Decreto régio em favor dos perseguidos
Por fim foi recebido em Nimes o decreto de Luis XVIII que anulava todos os poderes extraordinários conferidos tanto pelo rei, pelos príncipes, ou agentes subordinados, e as leis seriam agora administradas pelos órgãos regulares, e chegou um novo prefeito para pô-las em vigor. Porém, apesar das proclamações, a obra de destruição, detida por um momento, não foi abandonada, senão que logo foi retomada com renovada força e efeito. O 30 de julho, Jacques Combe, pai de família, foi morto por alguns da guarda nacional de Russau, e o crime foi tão público que o comandante da partida devolveu à família o livro de notas de bolso, e os papéis do falecido. No dia seguinte multidões amotinadas encheram a cidade e os subúrbios, ameaçando os coitados aldeões, e o primeiro de agosto os mataram sem oposição.
Ao meio-dia daquele mesmo dia, seis homens armados, encabeçados por Truphemy, o açougueiro, rodearam a casa de Monot, um marceneiro; dois da partida, que eram ferreiros, tinham estado trabalhando na casa o dia anterior, e tinham visto um protestante que se havia refugiado ali, o senhor Bourillon, que tinha sido tenente do exército, e que estava retirado com uma pensão. Era homem de excelente caráter, pacifico e inofensivo, e nunca tinha servido o imperador Napoleão. Precisaram apontá-lo a Truphemy, quem não o conhecia, enquanto partilhava seu frugal desjejum com a família. Truphemy lhe ordenou que fosse com ele, agregando: "Teu amigo Saussine já está no outro mundo". Truphemy o colocou no meio da tropa, e ardilosamente lhe ordenou que gritasse "Vive l'Empereur", o qual recusou, agregando que nunca havia servido o imperador. Em vão as mulheres e as crianças da casa intercederam por sua vida, enaltecendo suas gentis e virtuosas qualidades. Foi levado à Esplanada e tiroteado, primeiro por Truphemy, e depois pelo resto. Várias pessoas se aproximaram, atraídas pelo barulho de disparos, mas foram ameaçadas com uma sorte similar.
Depois de um certo tempo os bandidos foram embora, ao grito de "Vive le Roi". Algumas mulheres se encontravam entre eles, e ao ver uma delas dolorida, disse-lhe Truphemy: "Hoje matei sete, e tu, se dizeres uma palavra, serás a oitava". Pierre Coubert, um tecelão, foi arrancado de seu telar por um bando armado, e morto de um tiro em sua própria porta. Sua filha mais velha foi abatida com a culatra de um mosquete; e mantiveram um punhal junto ao peito de sua mulher enquanto os bandidos saqueavam sua vivenda. Paul Heraut, vendedor de sedas, foi literalmente despedaçado em presença de uma grande multidão e em meio dos impotentes temores e lágrimas de sua mulher e de seus quatro pequenos filhos. Os assassinos somente deixaram o cadáver para voltar à casa de Heraut e apoderar-se de tudo quanto fosse de valor. O número de assassinatos naquele dia não pode determinar-se. Uma pessoa viu seis cadáveres no Cours Neuf e nove foram levados ao hospital.
Se algum tempo depois os assassinatos ficaram menos freqüentes por alguns dias, o saqueio e as contribuições obrigatórias foram impostos ativamente. O senhor Salle d'Hombro foi despojado, em várias visitas, de sete mil francos; numa ocasião, quando alegou os grandes sacrifícios que tinha feito, o bandido lhe disse, apontando para seu cachimbo: "Olha, porei fogo a tua casa com isso, e com isto", agregou, brandindo uma espada, "acabarei contigo". Ante estes argumentos não cabia discussão nenhuma. O senhor Feline, fabricante de sedas, foi despojado de trinta e dois mil francos ouro, três mil francos prata, e vários rolos de seda.
Os pequenos lojistas estavam continuamente expostos a visitas e exigências de provisões, de tecidos, ou de qualquer coisa que vendessem. E as mesmas casas que incendiavam as casas dos ricos e destrocavam as vides dos agricultores, destrocavam os telares do tecelão, e roubavam as ferramentas do artesão. A desolação reinava no santuário e na cidade. as bandas armadas, em lugar de reduzir-se, aumentavam; os fugitivos, em lugar de voltar, recebiam constantes sobressaltos, e os amigos que lhes davam refúgio eram considerados rebeldes. Os protestantes que ficaram foram privados de todos seus direitos civis e religiosos, e até os advogados e xerifes tomaram a resolução de excluir a todos os da "pretendida religião reformada" de seus corpos. Os que estavam empregados na venda de fumo perderam suas licencias. Os diáconos protestantes encarregados dos pobres foram todos espalhados. De cinco pastores somente sobraram dois; um deles se viu obrigado a mudar de residência, e somente podia aventurar-se a ministrar os consolos da religião ou a executar suas funções de ministro sob o manto da noite.
Não satisfeitos com estes tipos de tormentos, publicações caluniosas e escarnecedoras acusaram os protestantes de levantar a proscrita bandeira das comunas e de invocar o caído Napoleão; e naturalmente como sendo indignos da proteção das leis e do favor do monarca.
Depois disso, centenas deles foram arrastados ao cárcere sem sequer uma única palavra escrita; e embora um diário oficial, levando o título de Journal du Gard, foi estabelecido por cinco meses, enquanto esteve influenciado pelo prefeito, o alcaide e outros funcionários, a palavra "estatuto" não foi mencionada uma única vez nele. Ao contrário, um de seus primeiros números descreveu os sofredores protestantes como "crocodilos, que somente choram de ira e lamentando que não tenham mais vítimas para devorar; como pessoas que tinham ultrapassado a Danton, a Marat e a Robespierre em fazer o mal; e que tinham prostituído suas filhas à guarnição para ganhá-la para Napoleão". Um extrato deste artigo, impresso com a coroa e as armas dos Borbones, foi vozeado nas ruas, e seu vendedor ia enfeitado com a medalha da policia.
Petição dos refugiados protestantes
A estas repreensões é oportuno opor a petição que os refugiados protestantes em Paris apresentaram a Luis XVIII em favor de seus irmãos de Nimes.
"Colocamos a vossos pés, sire, nossos agudos sofrimentos. Em vosso nome são degolados nossos concidadãos, e suas propriedades são devastadas. Aldeões enganados, em pretendida obediência a vossas ordens, se reuniram sob as ordens de um comissionado designado por vosso augusto sobrinho. Embora estavam prestes para atacar-nos, foram recebidos com seguridades de paz. O 15 de julho de 1815 soubemos da chegada de vossa majestade a Paris, e a bandeira branda ondeou de imediato em nossos edifícios. A tranqüilidade pública não tinha sido perturbada, quando entraram camponeses armados. A guarnição capitulou, mas foram assaltados ao retirar-se, e foram mortos quase todos. Nossa guarda nacional foi desarmada, a cidade ficou lotada de estranhos, e as casas dos principais habitantes, que professam a religião reformada, foram atacadas e saqueadas. Acompanhamos a lista. O terror tem feito fugir de nossa cidade os mais respeitáveis cidadãos".
"Vossa majestade tem sido enganada se não colocaram diante de vós a imagem dos horrores que transformam em deserto vossa boa cidade de Nimes. De contínuo têm lugar proscrições e arrestos, e a verdadeira e única causa é a diferença de opiniões religiosas. Os caluniados protestantes são os defensores do trono. Vosso sobrinho tem visto a nossos filhos sob suas bandeiras; nossas fortunas têm sido colocadas em suas mãos. Atacados sem razão, os protestantes não deram, nem sequer por uma justa resistência, o fatal pretexto à calúnia de parte de seus inimigos. Salvai-nos, sire! Apagai a chama da guerra civil; uma única ação de vossa vontade restaurará a existência política a uma cidade interessante por sua população e por seus produtos. Demandai conta de sua conduta aos líderes que trouxeram tais desgraças sobre nós. Colocamos ante vossos olhos todos os documentos que nos chegaram. O temor paralisa os corações e apaga as queixas de nossos concidadãos. Colocados numa situação mais segura, nos aventuramos a levantar nossa voz em favor deles", etc., etc.
Monstruosos ultrajes contra as mulheres
Em Nimes é coisa bem sabida que as mulheres lavam suas roupas bem nas fontes, bem nas ribeiras dos rios. Existe um grande lavadouro perto da fonte, onde se podem ver muitas mulheres por dia, ajoelhadas na borda da água, batendo suas roupas com pesadas pás de madeira em forma de raquetes. Este lugar chegou a ser o cenário das práticas mais vergonhosas e indecentes. A canalha católica virava as anáguas das mulheres por acima de suas cabeças, e as amarrava de maneira que ficassem expostas e submetidas a uma nova classe de tormento; porque, colocando pregos na madeira das paletas de lavar em forma de flor-de-lis, as batiam até que manava sangue de seus corpos e seus gritos desgarravam o ar. Freqüentemente se pedia a morte como fim deste ignominioso castigo, que era recusada com maligno regozijo. Para levar este ultraje até seu maior grau possível, se empregou esta tortura contra algumas que estavam grávidas. A escandalosa natureza destes ultrajes impedia a muitas das que o haviam sofrido fazê-lo público, e especialmente relatar suas circunstâncias mais agravantes. "Tenho visto", disse o senhor Duran, "a um advogado católico acompanhando os assassinos de Bourgade, armar uma batedora com aguçados pregos em forma de flor-de-lis; os vi levantar os vestidos das mulheres, e aplicá-lhes a seus corpos ensangüentados estas batedoras, com fortes pancadas, às que deram um nome que minha pluma recusa registrar. Nada podia detê-los, nem os clamores das atormentadas mulheres, a efusão de sangue, os murmúrios de indignação suprimidos pelo temor. Os cirurgiões que atenderam às mulheres que morreram podem testemunhar, pelas marcas de suas feridas, que agonias devem ter suportado; isto, por terrível que pareça, é, contudo, estritamente verdadeiro".
Não obstante, durante o progresso destes horrores e destas obscenidades, tão desonrosas para a França e a religião católica, os agentes do governo tinham poderosas forças a seu mando, com as quais, se empregadas retamente, teriam podido restaurar a tranqüilidade. Contudo, prosseguiram os assassinatos e os roubos, que foram tolerados pelos magistrados católicos, com bem poucas exceções; é verdade que as autoridades administrativas usaram palavras em suas proclamações, etc., mas nunca exerceram ações para deter as atrocidades dos perseguidores, que declararam desavergonhadamente que o dia 24, o aniversário de são Bartolomeu, tinham a intenção de fazer uma matança geral. Os membros da Igreja Reformada se encheram de terror, e em lugar de tomar parte na eleição de deputados, estiveram ocupados como puderam para prover a sua seguridade pessoal.
Ultrajes cometidos aos povos, etc.
Deixamos Nimes agora para examinar a conduta dos perseguidores na região das redondezas. Depois do restabelecimento do governo monárquico, as autoridades locais se distinguiram por seu zelo e diligência em apoiar seus patronos, e sob os pretextos de rebelião, ocultação de armas, descumprimento dos pagos de contribuições, etc., se permitiu às tropas, à guarda nacional e ao populacho armado saquear, arrestar e assassinar a pacíficos cidadãos, não meramente com impunidade, senão que alento e aprovação. No povo de Milhaud, perto de Nimes, se obrigou freqüentemente aos habitantes a pagarem grandes sumas para evitarem ser saqueados. Não obstante, isto não valeu de nada em casa de Madame Teulon. O domingo 16 de julho foram devastadas sua casa e propriedades. Levaram ou destruíram seus valiosos moveis, queimaram a palha e a madeira, e exumaram o corpo de um menino, enterrado no jardim, e o arrastaram em volta de um fogo acendido pela gentalha. Foi com grande dificuldade que a senhora Teulon escapou com vida.
O senhor Picherol, outro protestante, tinha ocultado alguns de seus bens em casa de um vizinho católico. Atacaram sua casa, e embora respeitaram todas as propriedades do último, as de seu amigo foram saqueadas e destruídas. No mesmo povoado, um dos da partida, duvidando de se o senhor Hermet, um alfaiate, era o homem al qual buscavam, perguntaram: "Tu és protestante?". Ao reconhecê-lo, disseram: "Muito bem". E o assassinaram ali mesmo. No cantão de Vauvert, onde havia uma igreja consistorial, extorquiram oitenta mil francos.
Nas comunas de Beauvoisin e Generac um punhado de libertinos cometeram excessos similares, sob o olhar do alcaide e aos gritos de "Vive le Roi". St. Gilles foi cenário das iniqüidades mais desalmadas. Os protestantes, os mais ricos dos habitantes, foram desarmados, enquanto suas casas eram saqueadas. Apelaram ao alcaide, porém este riu e foi embora. Este oficial tinha a sua disposição uma guarda nacional de várias centenas de homens, organizada sob suas próprias ordens. Seria fatigoso ler a lista dos crimes que tiveram lugar durante muitos meses. Em Clavisson, o alcaide proibiu aos protestantes a prática de cantar os Salmos, coisa que se costumava celebrar no templo, para que, como disse, não se ofendesse nem perturbasse os católicos.
Em Sommières a uns quinze quilômetros de Nimes, os católicos fizeram uma esplêndida procissão através da população, que continuo até o pôr-do-sol, e foi seguida pelo saqueio dos protestantes. Ao chegar tropas forasteiras a Sommières, recomeçou a pretendida busca de armas; obrigava-se aos que não possuíam mosquetes a comprá-los, com o propósito de que os rendessem, e apostavam soldados em suas casas a seis francos diários até que entregassem os artigos pedidos. A Igreja protestante, que tinha sido fechada, foi convertida em quartel para os austríacos. Depois de ter estado suspendido durante seis meses o serviço divino em Nimes, a igreja, chamada Templo pelos protestantes, foi reaberta, e se celebrou o culto público na manhã do 24 de dezembro. Ao examinar o campanário, se descobriu que alguém tinha roubado a vara central do sino. Ao aproximar-se a hora do serviço, se reuniram vários homens, mulheres e crianças ante a casa do senhor Ribot, o pastor, e ameaçaram com impedir o culto. Quando chegou a hora, dirigindo-se ele para a igreja, foi rodeado; lançaram-lhe os mais terríveis gritos; algumas mulheres o aferraram pelo colarinho da camisa; porém nada pôde perturbar sua firmeza nem excitar sua impaciência. Entrou na casa de oração e subiu ao púlpito. Jogaram pedras dentro e caíram entre os adoradores; contudo, a congregação permaneceu tranqüila e atenta, e o serviço continuou entre ruídos, ameaças e insultos.
Ao saírem, muitos teriam sido mortos se não fosse sido pelos caçadores da guarnição, que os protegeram honrosa e zelosamente. Pouco depois o senhor Ribot recebeu a seguinte carta do capitão dos caçadores:
2 de janeiro, 1816.
Lamento profundamente os prejuízos dos católicos contra os protestantes, dos quais dizem que não amam o rei. Segui agindo como o tendes feito até agora, e o tempo e vossa conduta contradirão os católicos; se tiver lugar um tumulto similar ao do sábado, informai-me. Conservo meus informes destes fatos, e se os agitadores resultam incorrigíveis, e esquecem o que devem ao melhor dos reis e ao estatuto, cumprirei com meu dever e informarei o governo de suas atuações. Adeus, querido senhor; daí ao consistório seguridades de minha estima, e dos sentimentos que abrigo acerca da moderação com que afrontaram as provocações dos malvados de Sommières. Tenho a honra de saudar-vos com respeito
Suval de Laine.
Este pastor recebeu outra carta Deus marquês de Montlord, o 6 de janeiro, para alentá-lo a unir-se com todos os bons homens que crêem em Deus para obter o castigo dos assassinos, bandidos e perturbadores da paz pública, e a ler publicamente as instruções que tinha recebido do governo a este efeito. Apesar disto, o 20 de janeiro de 1816, quando se celebrou o serviço de comemoração da morte de Luis XVI, formando-se uma procissão, os guardas nacionais dispararam contra a bandeira branca pendurada nas janelas dos protestantes, e terminaram o dia saqueando-os.
Na comuna de Angargues, as coisas estavam ainda piores; e na de Fontanes, desde a entrada do rei em 1815, os católicos quebrantaram todos os compromissos com os protestantes; de dia os xingavam, e de noite forçavam suas portas, ou as marcavam com giz para serem saqueadas ou queimadas. St. Mamert foi repetidamente visitada por estes saqueios, e em Montruiral, em data tão tardia como o 16 de junho de 1816, os protestantes foram atacados, espancados e encarcerados por ousar celebrar o regresso de um rei que tinha jurado preservar a liberdade de religião e manter o estatuto.
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