Relato das perseguições aos Amigos, comumente chamados quáqueros, nos Estados Unidos
Por volta de meados do século dezessete se infligiu muita perseguição e sofrimento a uma seita de inconformados protestantes, comumente chamados quáqueros; gente que surgiu naquele tempo na Inglaterra, e alguns dos quais selaram seu testemunho vida seu sangue.
Para uma história destas pessoas, veja a história de Sewell, ou a de Gouth, acerca deles.
Os principais motivos pelos que seu inconformismo de consciência os fez susceptíveis às penas da lei foram:
• Sua resolução cristã de reunir-se publicamente para o culto de Deus da forma mais conforme a sua consciência.
• Sua rejeição a pagar dízimos, que consideravam uma cerimônia judaica, ab-rogada pela vinda de Cristo.
• Seu testemunho em contra das guerras e das lutas, cuja prática consideravam inconseqüente com o mandamento de Cristo: "Amai vossos inimigos" (Mt 5.44).
• Sua constante obediência ao mandamento de Cristo: "Não jureis de nenhum modo" (Mt 5:34).
• Sua rejeição a pagar taxas ou valorações para edificar e reparar casas de culto com as que eles não estejam de acordo.
• Seu uso da linguajem apropriada e escrituraria, "tu" e "ti" para uma pessoa individual; e seu afastamento do costume de descobrir-se a cabeça como homenagem a um homem.
• A necessidade em que se encontraram muitos de publicar o que acreditavam ser a doutrina da verdade, e isso às vezes nos lugares designados para o culto nacional público.
Sua consciente inconformidade nos anteriores pontos os expus a muita perseguição e sofrimento, consentindo em procedimentos judiciais, multas, cruéis espancamentos, açoites e outros castigados corporais; encarceramentos, desterros e inclusive a morte.
Dar um relato detalhado de suas perseguições e sofrimentos iria além dos limites desta obra; portanto remitimos, para esta informação, às histórias já citadas, e mais em particular à Coleção de Besse acerca de seus sofrimentos; e limitaremos nosso relato aqui maiormente aos que sacrificaram suas vidas, que evidenciaram, por sua disposição de mente, constância, paciência e fiel perseverança, que estavam influenciados por um sentimento de dever religioso.
Numerosas e repetidas foram as perseguições contra eles; e às vezes por transgressões ou ofensas que a lei nem contemplava nem abrangia.
Muitas das multas e penalidade que lhes foram impostas não somente eram irrazoáveis e exorbitantes, de modo que não podiam pagá-las e se viam aumentadas várias vezes o valor da demanda; por isso muitas famílias pobres ficavam enormemente angustiadas, e se viam obrigadas a depender da ajuda de seus amigos.
Não só grandes números foram cruelmente açoitados a chicotadas em público, como criminosos, senão que alguns foram marcados com ferros candentes, e a outros lhes cortaram as orelhas.
Muitíssimos foram encerrados longo tempo em imundas masmorras, nas que alguns terminaram suas vidas, como conseqüência do encerro.
Muitos foram sentenciados ao desterro, e muitos foram deportados. Alguns foram desterrados sob pena de morte, e quatro foram finalmente executados pelo carrasco, como veremos mais para frente, após inserir cópias de algumas leis do país onde sofreram.
Numa corte geral celebrada em Boston, o 14 de outubro de 1656
Por quanto há uma maldita seita de hereges que surgiu ultimamente no mundo, chamados comumente quáqueros, que assumem serem enviados diretamente de parte de Deus e ser assistidos de maneira infalível pelo Espírito, falando e escrevendo opiniões blasfemas, menosprezando o governo e a ordem de Deus, na Igreja e na comunidade, falando mal das dignidades, vituperando e injuriando a magistrados e ministros, tratando de afastar o povo da fé, e conseguir prosélitos para seus perniciosos caminhos: este tribunal, tomando em consideração suas premissas, e para impedir males semelhantes como os que por causa deles têm lugar em nossa terra, ordenamos portanto que, pela autoridade deste tribunal, que seja ordenado e cumprido que qualquer patrão ou comandante de qualquer nave, barca, chalupa ou bote que traga a qualquer porto, arroio ou enseada, dentro desta jurisdição, a qualquer quáquero ou quáqueros, ou quaisquer outros hereges blasfemos, pagará, ou fará pagar a multa de cem libras ao tesoureiro do país, exceto se carecia de verdadeiro conhecimento ou informação de que o fossem; em tal caso, tem liberdade de demonstrar sua inocência declarando sob juramento quando não haja suficiente prova do contrário; e em caso de falta de pagamento ou falta de aval, será encarcerado, e continuará nesta condição até que fique satisfeita a suma ao tesoureiro, como se indicou acima.
E ao comandante de qualquer barca, nave ou chalupa que fique legalmente convicto, dará suficiente segurança ao governador, ou a qualquer ou mais dos magistrados, que tenham poder para determinar a mesma, para levá-los outra vez ao lugar de onde vieram; e em caso de que recuse fazê-lo, o governador, ou um ou mais dos magistrados, recebem por estes instrumento poderes para emitir sua ou suas ordens para entregar o mencionado patrão ou comandante à prisão, para que fique nela até que dê suficiente seguridade do conteúdo ao governador, ou a qualquer dos magistrados, como já foi dito.
E se ordena e estabelece além disso que qualquer quáquero que chegue a este país desde o estrangeiro, ou que chegue a esta jurisdição desde quaisquer zonas vizinhas, será imediatamente levado à Casa de Correição; ao entrar nela, será severamente açoitado, e será mantido constantemente ocupado em trabalhos para o diretor, e não se permitirá que ninguém converse nem fale com eles durante o tempo de seu encarceramento, que não se prolongará além do necessário.
E se ordena que se qualquer pessoa introduzir intencionadamente em qualquer porto desta jurisdição quaisquer livros ou escritos quáqueros, acerca de suas diabólicas opiniões, pagará por tal livro ou escrito que lhe seja legalmente demonstrado contra ele ou eles a suma de cinco libras; e todo o que dispersar ou ocultar tal livro ou escrito e seja encontrado com ele encima, ou em sua casam e não o entregar de imediato ao magistrado, pagará uma multa de cinco libras por dispersar ou esconder tal livro ou escrito.
E também se ordena, além do mais, que se quaisquer pessoas de dentro desta colônia assumem a defesa das opiniões heréticas dos quáqueros, ou de nenhum de seus livros ou artigos, serão multados pela primeira vez com 40 xelins; se persistirem no mesmo, e as defendem numa segunda vez, quatro libras; se apesar disso voltam defender e a manter as mencionadas opiniões heréticas dos quáqueros, serão levados à Casa de Correição até que haja uma passagem conveniente para tirá-los desta terra, sentenciados a desterro pelo Tribunal.
Finalmente, se ordena que toda pessoa ou pessoas que injuriem às pessoas dos magistrados ou dos ministros, como é usual com os quáqueros, tais pessoas serão severamente açoitadas, ou pagarão multa de cinco libras.
Esta é uma cópia fiel da ordem do tribunal, como testemunha
Edward Rawson, sec.
Numa corte geral celebrada em Boston o 14 de outubro de 1657
Em adição à anterior ordem, com referência à chegada ou transporte de qualquer da maldita seita dos quáqueros a esta jurisdição, se ordena que qualquer que desde agora traga ou faça trazer, direta ou indiretamente, a qualquer quáquero ou quáqueros conhecidos, ou outros hereges blasfemos, propositadamente, cada uma destas pessoas será multada com quarenta xelins por cada hora de hospitalidade e ocultação de qualquer quáquero ou quáqueros como se mencionou, e será encarcerada como se disse antes, até que a multa seja satisfeita integramente.
E se ordena além disso que se qualquer quáquero ou quáqueros têm a presunção, depois ed terem sofrido o que a lei demanda, de voltar entrar nesta jurisdição, serão arrestados, sem necessidade de ordem judicial quando não haja magistrado disponível, por qualquer policia, comissário ou xerife, e levados de policia em policia até o magistrado mais próximo, que encarcerará as mencionadas pessoas em prisão estrita, para ficarem ali (sem fiança) até a seguinte reunião do tribunal, onde serão julgados legalmente.
Depois de ficar convicto de pertencer à seita dos quáqueros, será sentenciado ao desterro, sob pena de morte. E todos aqueles habitantes desta jurisdição que sejam convictos de pertencer à mencionada seita, bem por assumir, publicar ou defender as horrendas opiniões dos quáqueros, ou agitando motins, sedição ou rebelião contra o governo, ou assumindo suas insultantes e subversivas práticas, como a de negar respeito cortes a seus iguais ou superiores, e afastando-se das assembléias da igreja; e em lugar disso freqüente reuniões próprias, em oposição a nossa ordem eclesiástica; aderindo-se ou aprovando a qualquer quáquero conhecido ou os princípios e as práticas dos quáqueros que sejam opostas às ortodoxas opiniões recebidas dos piedosos, e que trate de levar a outrem a serem desafetos frente ao governo civil e à ordem da Igreja, ou que condene a prática e os procedimentos deste tribunal contra os quáqueros, manifestando por isso que está de acordo com eles, cujo dignidade é a subversão da ordem estabelecida na Igreja e no estado; toda pessoa assim, sob convicção ante o mencionado Tribunal, da forma mencionada, será encerrada em prisão estrita durante um mês, e depois, a não ser que escolha voluntariamente ir-se desta jurisdição, se der fiança por sua boa conduta, e comparecer ante o tribunal em sua seguinte convocatória, persistindo em sua obstinação, recusando retratar-se e reformar-se das mencionadas opiniões, será sentenciada a desterro sob pena de morte. E qualquer magistrado que ao receber denúncia de toda pessoa assim, a fará apreender e encerrar em prisão, a sua discrição, até que compareça a juízo como se especificou anteriormente.
Parece que também se promulgaram leis nas então colônias de New Plymouth e New Haven, e no estabelecimento holandês de New Amsterdam, agora New York, proibindo às pessoas chamadas quáqueros que entrassem nestes lugares, sob severas penas; como conseqüência disso, alguns sofreram consideravelmente.
Os dois primeiros em serem executados foram William Robinson, mercador, de Londres, e Marmaduke Stevenson, camponês, de Yorskshire. Chegados a Boston, a começos de setembro, foram feitos comparecer ante o Tribunal e ali sentenciados a desterro, sob pena de morte. Esta sentença foi também pronunciada contra Mary Dyar, mencionada mais na adiante, e Nicolas Davis, que se encontravam em Boston. Mas William Robinson, considerado como mestre, foi também condenado a ser duramente açoitado, e se ordenou ao chefe de policia que conseguisse um homem forte para isso. Então Robinson foi levado até a rua, e despido; colocando suas mãos através dos orifícios da carreta de um grande canhão, onde o manteve o carcereiro, o verdugo lhe aplicou vinte açoites com um chicote de três pontas. Depois ele e os outros presos foram liberados e desterrados, como se desprende da seguinte ordem:
Se ordena por esta que se coloque agora em liberdade a William Robinson, Marmaduke Stevenson, Mary Dyar e Nicolas Davis, que, por ordem do tribunal e do conselho, tinham sido encarcerados, porque se desprendeu por própria confissão deles, suas palavras e ações, que são quáqueros; portanto se pronunciou sentença contra eles para se saíssem desta jurisdição, sob pena de morte; e que será a seu próprio risco se qualquer deles for achado dentro desta jurisdição ou em qualquer parte da mesma depois do 14 deste presente mês de setembro.
Edward Rawson
Boston, 12 de Santo, 1659.
Embora Mary Dyar e Nicolas Davis deixaram esta jurisdição naquele então, Robinson e Stevenson, contudo, embora saíram da cidade de Boston, não puderam decidir-se (não estando livres em sua consciência) a ir-se daquela jurisdição, ainda se jogassem a vida. Dirigiram-se então a Salem, e a alguns lugares das redondezas, para visitar e edificar a seus amigos da fé. Mas não se passou muito tempo antes que voltassem a serem encarcerados em Boston, e acorrentados nas pernas. No mês seguinte também voltou Mary Dyar. E enquanto estava enfrente do cárcere, falando com um tal Christopher Holden, que tinha chegado ali com o propósito de indagar acerca de algum barco que se dirigisse à Inglaterra, aonde queria ir, foi também arrestada.
Assim, agora tinham a três pessoas que, segundo a lei deles, tinham perdido o direito à vida. O 20 de outubro estes três foram feitos comparecer ante o tribunal, onde estavam John Endicot e outros reunidos. Chamado ao tribunal, Endicot ordenou ao guarda que lhes tirasse os chapéus; depois lhes disse que eles tinham promulgado várias leis para manter os quáqueros fora de sua companhia, e que nem as chicotadas nem o cárcere, nem o corte de orelhas nem o desterro sob pena de morte os podia manter afastados. Disse também que nem ele nem os outros desejavam a morte de nenhum deles. Contudo, sem mais preâmbulo, estas foram suas seguintes palavras: "Ouvi e escutai vossa sentença de morte". Também se pronunciou sentença de morte contra Marmaduke Stevenson, Mary Dyar e William Edrid. Vários outros foram encarcerados, açoitados e multados.
Não temos desejo algum de justificar os Peregrinos por estes procedimentos, porém acreditamos que sua conduta admite atenuação, considerando as circunstâncias da idade em que viviam.
Os pais de Nova Inglaterra sofreram incríveis dificuldades para prover-se de um lar no deserto; e para proteger-se no gozo imperturbável de uns direitos que haviam adquirido a tão grande preço, adotaram às vezes medidas que, se julgadas pelas perspectivas mais ilustradas e liberais de nosso tempo presente, devem ser pronunciadas como totalmente injustificáveis. Porém, devem ser condenados sem misericórdia por não terem agido em base a uns princípios que eram então não reconhecidos e desconhecidos em toda a cristandade? Se terá a eles unicamente como responsáveis de umas opiniões e uma conduta que tinha-se consagrado desde a antigüidade e que era comum aos cristãos de todas as outras denominações? Cada governo que existia então se arrogava o direito de legislar acerca de questões de religião; e de reprimir a heresia mediante estatutos penais. Este direito era reclamado pelos governantes, admitido pelos súbditos, e está sancionado pelos nomes de lorde Bacon e de Montesquieu, e por muitos outros igualmente afamados por seus talentos e erudição. Assim, é injusto "pressionar sobre uma pobre seita perseguida os pecados de toda a cristandade". A falta destes pais foi a falta de seu tempo; e embora não possa ser justificada, desde logo é um atenuante de sua conduta. Igualmente poderiam ser condenados por não compreender e agir com base nos princípios da tolerância religiosa. Ao mesmo tempo é justo dizer que por imperfeitas que fossem suas perspectivas em quanto aos direitos da consciência, estavam contudo muito avançados à idade a qual pertenciam; e que é mais com eles que com nenhuma classe de homens sobre a terra que está o mundo em dívida pelas perspectivas mais racionais que prevalecem hoje em dia acerca da questão da liberdade civil e religiosa.
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