Joan Waste e outros
Esta pobre e honrada mulher, cega de nascimento e solteira, de vinte e dois anos de idade, pertencia à paróquia de Todos os Santos, Derby. Seu pai era barbeiro, e também fabricava cordas para melhor ganhar-se o sustento. Nesta tarefa ela o ajudava, e também aprendeu a tecer vários artigos de vestir. Recusando comunicar-se com aqueles que mantinham doutrinas contrárias às que ela tinha aprendido nos dias do piedoso Eduardo, foi feita comparecer ante o doutor Draicot, o chanceler do bispo Blaine, e ante Peter Finch, oficial de Derby.
Tentaram confundir esta coitada moça com sofismas e ameaças, mas ela ofereceu ceder à doutrina do bispo se este estiver disposto a responder como no Dia do Juízo (como o havia feito o piedoso doutor Taylor em seus sermões) de que sua crença na presença real do Sacramento era verdadeira. A princípio, o bispo respondeu que o faria, mas ao lembrá-lo o doutor Draicot que não podia de jeito nenhum responder por um herege, retirou sua confirmação de suas próprias crenças; ela então lhes respondeu que se suas consciências não lhes permitiam responder ante o tribunal de Deus pela verdade que eles queriam que ela aceitasse, que ela não contestaria nenhuma outra de suas perguntas. Então se pronunciou sentença, e o doutor Draicot foi encomendado para predicar o sermão da condena da moça, o que teve lugar o 1 de agosto de 1556, o dia de seu martírio. Ao terminar seu fulminante discurso, a coitada cega foi logo conduzida a um lugar chamado Windmill Pit, perto da cidade, onde por um tempo susteve a mão de seu irmão, e depois se separou para o fogo, pedindo à compadecida multidão que orasse por ela, e a Cristo que tivesse misericórdia dela, até que a gloriosa luz do eterno Sol de justiça resplandeceu sobre seu espírito fora do corpo.
Em novembro, quinze mártires foram aprisionados no castelo de Canterbury, os quais foram todos ou queimados ou deixados morrer de fome. Entre estes últimos estavam J. Clark, D. Chittenden, W. Foster de Stonc, Mice Potkins, y J. Archer, de Cranbrooke, tecelão. Os dois primeiros não tinham sido condenados, mas os outros tinham sido sentenciados ao fogo. Foster, em seu interrogatório, comentou acerca da utilidade de levar círios acesos no dia da Candelária, que igual valeria levar uma forca, e que um patíbulo teria tanto efeito como uma cruz.
Temos agora levado a seu fim as sanguinárias atuações da impiedosa Maria, no ano 1556, cujo número se elevou acima de OITENTA E QUATRO.
O começo do ano 1557 foi notável pela visita do cardeal Pole à Universidade de Cambridge, que parecia ter grande necessidade de ser limpada de predicadores hereges e de doutrinas reformadas. Um objetivo era também executar a farsa papista de julgar a Martinho Bucero e a Paulus Phagius, que tinham estado enterrados já durante três ou quatro anos. Com este propósito, as igrejas de Santa Maria e de são Miguel foram colocadas sob interdito como lugares vis e ímpios, indignos do culto de Deus, até que fossem perfumadas e lavadas com água benta papista, etc. o torpe ato de citar a comparecer a estes defuntos reformadores não teve o mais mínimo efeito sobre eles, e o 26 de janeiro se pronunciou sentença de condenação, parte da qual rezava assim, e pode servir como amostra dos processos desta natureza: "Por isso pronunciamos ao dito Martinho Bucero e a Paulus Phagius excomungados e anatematizados, tanto pelas leis comuns como por cartas processais; e para que sua memória seja condenada, condenamos também seus corpos e ossos (que no malvado tempo do cisma, e florescendo outras heresias neste reino, foram precipitadamente sepultados em terra sagrada) sejam exumados e lançados longe dos corpos e ossos dos fiei, segundo os cânones santos, e mandamos que eles e seus escritos, se encontram-se aqui quaisquer deles, sejam publicamente queimados; e proibimos a todas as pessoas desta universidade, cidade ou lugares limítrofes, que leiam ou escondam seus heréticos livros, tanto pela lei comum como por nossas cartas processais".
Depois que a sentença fosse lida, o bispo mandou que seus corpos foram exumados de seus sepulcros e, degradados de seus sagradas ordens, entregues em mãos do braço secular; porque não lhes era legítimo a pessoas tão inocentes, e odiando todo derramamento de sangue e detestando todo ânimo de homicídio, dar morte a ninguém.
O 6 de fevereiro, seus corpo, dentro de seus ataúdes, foram levados ao meio da praça do mercado em Cambridge, acompanhados por uma vasta multidão. Se afincou um posto no chão, ao qual se amarraram os ataúdes com grandes correntes, fixadas pelo centro, como se os conversão tivessem estado vivos. Quando o fogo começou ascender e pegou nos ataúdes, foram lançados às chamas também alguns livros dos condenados, para queimá-los. Contudo, no reinado de Elizabete se fez justiça à memória destes piedosos e eruditos homens, quando o senhor Ackworth, orador da universidade, e o senhor J. Pilkington pronunciaram discursos em honra de sua memória, reprovando seus perseguidores católicos.
O cardeal Pole infligiu também sua impotente fúria contra o cadáver da mulher de Peter Martyr que, por ordem sua, foi exumado da sepultura, e enterrado num distante estercoleiro, em parte porque seus ossos estavam muito perto das relíquias de são Fridewide, que tinha sido anteriormente muito estimado naquele colégio, e em parte porque queria purificar Oxford de restos heréticos, igual que Cambridge. Porém no reinado que se seguiu, seus restos foram restaurados a seu anterior cemitério, e inclusive misturados com os do santo católico, para assombro e mortificação absolutos dos discípulos de Sua Santidade o Papa.
O cardeal Pole publicou uma lista de cinqüenta e quatro artigos contendo instruções para o clero de sua diocese de Canterbury, alguns dos quais são demasiado ridículos e pueris para excitar em nossos dias outra coisa senão o riso.
Perseguições na diocese de Canterbury
No mês de fevereiro foram encerradas em prisão as seguintes pessoas: R. Coleman, de Waldon, um operário; Joan Winseley, mulher solteira de Horsley Magna; S. Glover, de Rayley; R. Clerk, de Much Holland, marinheiro; W. Munt, de Much Bendey, serrador; Margaret Field, de Ramsey, mulher solteira; R. Bongeor, curtidor; R. Jolley, marinheiro; Allen Simpson, Helen Ewire, C. Pepper, viúva; Alice Walley (que se desdisse); W. Bongeor, vidraceiro, todos eles de Colchester; R. Atkin, de Halstead, tecelão; R. Barbock, de Wilton, marceneiro; R. George, de Westbarhonlt, operário; R. Debnam de Debenham, tecelão; C. Wanen, de Cocksall, solteira; Agnes Whitlock, de Dover-court, solteira; Rose Allen, solteira; y T. Feresannes, menor; ambos de Colchester.
Estas pessoas foram feitas comparecer ante Bonner, que as teria feito executar imediatamente, mas o cardeal Pole era partidário de medidas muito mais misericordiosas, e Bonner, numa de suas cartas ao cardeal, parece estar consciente de que o havia desagradado, porque utiliza esta expressão: "Pensei em mandá-los a todos a Fulham, e pronunciar ali sentença contra eles; contudo, percebendo que em minha última atuação vossa graça se ofendeu, achei meu dever, antes de prosseguir, informar a vossa graça". Esta circunstância confirma o relato de que o cardeal era uma pessoa com humanidade; e embora um católico zeloso, nós, como protestantes, estamos dispostos a rendê-lhe a honra que merece seu caráter misericordioso. Alguns dos acerbos perseguidores o denunciaram ante o Papa como favorecedor de hereges, e foi chamado a Roma, porém a Rainha Maria, por um rogo particular, logrou sua permanência na Inglaterra. Contudo, antes do final de sua vida, e pouco antes de sua última viagem de Roma a Inglaterra, esteve sob graves suspeitas de favorecer a doutrina de Lutero.
Assim como no último sacrifício quatro mulheres honraram a verdade, igualmente no seguinte auto de fé temos um número semelhante de mulheres e varões que sofreram, o 30 de junho de 1557, em Canterbury, e que se chamavam J. Fishcock, F. White, N. Pardue, Barbary Final, que era viúva, a viúva de Barbridge, a esposa de Wilson e a esposa de Benden.
Deste grupo observaremos mais particularmente a Alice Benden, mulher de Edward Benden, de Staplehurst, em Kent. Tinha sido arrestada em outubro de 1556 por não assistência, e liberada com estritas ordens de emendar sua conduta. Seu marido era um fanático católico, e ao falar em público da contumácia de sua mulher, foi enviada ao castelo de Canterbury, onde sabendo quando fosse enviada ao cárcere do bispo seria matada de fome com uma misérrima quantidade de alimentos ao dia, começou a preparar-se para este sofrimento tomando uma mínima refeição diária.
O 22 de janeiro de 1557, se marido escreveu ao bispo que caso se impedisse que o irmão de sua mulher, Roger Hall, a continuasse confortando e ajudando, talvez ela voltaria atrás; por isso foi trasladada à prisão chamada Monday's Hole. Seu irmão a buscou com diligência, e depois de cinco semanas, de forma providencial, ouviu sua vos numa masmorra, mas não pôde dar-lhe outro alívio que pôr algo de dinheiro num pedaço de pão, e alcançá-lo com a ajuda de uma longa vara. Deve ter sido terrível a situação desta pobre vítima, jazendo na palha, entre paredes de pedra, sem trocar de vestido nem com os mais mínimos requisitos de limpeza durante nove semanas!
O 25 de março foi chamada diante do bispo, que lhe ofereceu a liberdade e recompensas se voltava a sua casa e se submetia. Mas a senhora Benden tinha-se acostumado ao sofrimento, e mostrando-lhe os braços contraídos e seu rosto famélico, recusou afastar-se da verdade. Sem embargo, foi tirada deste buraco escuro e levada a West Gate, de onde foi tirada no final de abril para ser condenada e depois lançada na prisão do castelo até o 19 de junho, dia em que deveria ser queimada. Na estaca deu seu lenço a um homem chamado John Banns como memória, e do cinto tirou uma renda branca, pedindo-lhe que a entregasse a sua irmã, dizendo-lhe que era a última atadura que tinha levado, a exceção da corrente; e a seu pai devolveu um xelim que tinha-lhe enviado.
Estes sete mártires tiraram as roupas com presteza, e já preparados se ajoelharam, e oraram com tal fervor e espírito cristão que até os inimigos da cruz se sentiram afetados. Depois de ter feito uma invocação conjunta, foram amarrados à estaca e, rodeados de implacáveis labaredas, entregaram suas almas em mãos do Senhor vivo.
Matthew Plaise, um tecelão e cristão sincero e agudo, foi levado diante de Tomás, bispo de Dover, e de outros inquisidores, aos que embromou engenhosamente com suas respostas indiretas, das que se segue uma amostra:
Doutor Harpsfield: Cristo chamou ao pão Seu corpo; que dizes tu que é?
Plaise: Creio que é o que lhes deu.
Dr. H.: E que era?
P: O que Ele partiu.
Dr. H.: E que partiu?
P: O que tomou.
Dr. H.: Que tomou?
P: Digo eu que o que lhes deu, o que certamente comeram.
Dr. H.: Bem, então tu dizes que era somente pão o que os discípulos comeram.
P: Eu digo que o que Ele lhes deu é o que eles verdadeiramente comeram.
Seguiu-se uma discussão muito prolongada, na qual pediram a Plaise que se humilhasse ante o bispo; mas a isto ele recusou. Não se sabe se este valoroso homem morreu no cárcere, se foi executado ou liberado.
O reverendo John Hullier
O reverendo John Hullier se educou no Eton College, e com o tempo veio ser vigário de Babram, a três milhas de Cambridge, e depois foi a Lynn, onde, ao opor-se à superstição dos papistas, foi levado ante o doutor Thirlby, bispo de Ely, e enviado ao castelo de Cambridge; aqui esteve um tempo, e depois foi enviado à prisão de Tolbooth onde, depois de três meses, foi conduzido à Igreja de Santa Maria, e ali condenado pelo doutor Fuller. Na Quinta-Feira Santa foi levado à fogueira; enquanto tirava as roupas, disse as pessoas que estava a ponto de sofrer por uma causa justa, e os exortou a acreditar que não havia outra rocha senão Jesus Cristo sobre a qual edificar. Um sacerdote chamado Boyes pediu então ao alcaide que o silenciasse. Depois de orar, foi mansamente à fogueira, e amarrado então com uma corrente e metido num barril de alcatrão, pegaram fogo às canas e à lenha. Mas o vento arrastou o fogo diretamente detrás dele, o que o fez orar tanto mais fervorosamente sob uma severa agonia. Seus amigos pediram ao verdugo que acendesse os feixes com o vento em sua cara, o que foi feito de imediato.
Lançaram agora uma quantidade de livros ao fogo, um dos quais (o Serviço de Comunhão) ele pegou, o abriu, e gozosamente ficou lendo-o, até que o fogo e a fumaça o privaram da visão; mas incluso então, em fervorosa oração, apertou o livro contra seu coração, dando graças a Deus por dar-lhe, em seus últimos momentos, este dom tão precioso.
Sendo cálido o dia, o fogo ardeu violentamente; num momento determinado, quando os espectadores pensavam que já tinha deixado de existir, exclamou repentinamente: "Senhor Jesus, recebe meu espírito!", e com mansidão entregou sua vida. Foi queimado em Jesus Greden, não longe do Jesus College. Tinham-lhe colocado pólvora, porém morreu antes que se acendesse. Este piedoso mártir constituiu um singular espetáculo, porque sua carne ficou tão queimada desde os ossos, que continuaram erguidos, que apresentou a idéia de uma figura esquelética acorrentada numa estaca. Seus restos foram ansiosamente tomados pela multidão, e venerados por todos os que admiraram sua piedade ou detestavam o desumano fanatismo.
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