A história de Roger Holland
Num cercado retirado perto de um campo de Islington tinham-se reunido um grupo de umas quarenta pessoas honradas. Enquanto se dedicavam religiosamente à leitura e exposição das Escrituras, vinte e sete delas foram levadas ante Sir Roger Cholmly. Algumas das mulheres escaparam, e vinte e dois foram levados a Newgate, ficando em cárcere durante sete semanas. Antes de serem interrogados foram informados pelo guarda, Alexandre, que o único que precisavam para ser liberados era ouvir missa. Por fácil que possa parecer esta condição, estes mártires valorizavam mais a pureza de suas consciências que a perda da vida ou de suas propriedades; por isso, treze foram queimados, sete em Smithfield e seis em Brentwood; dois morreram em prisão, e outros sete foram providencialmente preservados. Os nomes dos sete que sofreram em Smithfield eram: H. Pond, R. Estland, R. Southain, M. Ricarby, J. Floyd, J. Holiday, e Roger Holland. Foram enviados a Newgate o 16 de julho de 1558, e executados o 27.
Este Roger Holland, um mercador e alfaiate de Londres, foi primeiro aprendiz de um mestre Kempton, em Black Boy, Watling St., dando-se à dança, esgrima, o jogo e às más companhias. Uma vez recebeu de seu patrão uma certa quantia de dinheiro, trinta libras, e perdeu tudo jogando aos dados. Por isso se propus fugir ao outro lado do mar, para a França ou a Flandes.
Com esta decisão, chamou cedo pela manhã a uma discreta criada da casa, chamada Elizabete, que professava o Evangelho, e que vivia uma vida digna desta profissão. A ela revelou a perda que tinha sofrido por sua insensatez, lamentando não ter seguido seus conselhos, e rogando-lhe que lhe entregasse a seu amo uma nota autógrafa na qual reconhecia a dívida, que pagaria se alguma vez lhe era possível; também lhe rogava que mantivesse secreta sua vergonhosa conduta, para não levar os cabelos brancos de seu pai com dor a uma sepultura prematura.
A criada, com uma generosidade e uns princípios cristãos raramente ultrapassados, consciente de que sua imprudência poderia ser sua ruína, lhe deu trinta libra, que eram parte de uma suma que recentemente tinha recebido por um testamento. "Aqui tens o dinheiro que necessitam; toma-o, eu fico com a nota, porém com esta expressa condição: que abandones tua vida lasciva e cheia de vício; que nem jures nem fales obscenamente, e que deixes de jogar; porque se fizerdes tal coisa, mostrarei de imediato esta nota a teu patrão. Também queiro que me prometas assistir à prédica diária em Todos os Santos, e ao sermão em são Paulo cada domingo; que jogues fora todos teus livros papistas, e que em lugar deles coloque o Novo Testamento e o Livro de Culto, e que leias as Escrituras com revelação e temor, pedindo a Deus Sua graça para que te dirija em sua verdade. ora também fervorosamente a Deus que perdoe teus anteriores pecados, e que não se lembre dos pecados de tua juventude; e que de Seu favor recebas o temor de quebrantar Suas leis ou de ofender Sua majestade. Assim te guardará Deus e te concederá o desejo de teu coração". Temos que honrar a memória desta excelente criada, cujos piedosos esforços estavam igualmente dirigidos a beneficiar o irreflexivo jovem nesta vida e na vindoura. Deus não permitiu que o desejo desta excelente criada se perdesse em solo estéril; apos meio ano o licencioso Holland se transformou num zeloso confessor do Evangelho, e foi instrumento para a conversão de seu pai e de outros aos que visitou em Lancashire, para consolo espiritual deles e reforma e saída do papismo.
Seu pai, comprazido com a mudança de sua conduta, lhe deu quarenta libras para que começasse seu negócio em Londres.
Logo Roger voltou a Londres, e foi à criada que havia-lhe emprestado o dinheiro para pagar a seu patrão, e lhe disse: "Elizabete, aqui está o dinheiro que me emprestas-te; e pela amizade, boa vontade e bom conselho que recebi de ti não posso pagar-te mais que fazendo de ti minha esposa". E pouco depois se casaram, por que teve lugar no primeiro ano da Rainha Maria.
Depois disto permaneceu nas congregações dos fiéis, até ser apresado, junto com os outros seis mencionados.
E depois de Roger Holland, ninguém mais sofreu em Smithfield pelo testemunho do Evangelho; graças sejam dadas a Deus.
Flagelações ministradas por Bonner
Quando este cruel católico viu que nem as perseguições, nem as ameaças nem a prisão podia produzir alteração alguma na mente de um jovem chamado Tomás Hinshaw, o mandou a Fullham, e durante a primeira noite o colocou no cepo, sem outro alimento que pão e água. Na manhã seguinte foi ver se este castigo tinha executado alguma mudança em sua mente, porém ao ver que não, enviou seu arquidiácono, o doutor Harpsfielf, para que conversasse com ele. O doutor logo perdeu o humor ante suas respostas, o acusou de briguento, e lhe perguntou se percebia que com tal atitude condenaria sua alma. "Do que estou certo", disse-lhe Tomás, "é de que vos dedicais a promover o tenebroso reino do mal, não o amor pela verdade". Estas palavras foram transmitidas pelo doutor ao bispo, que com uma paixão que quase lhe impedia articular as palavras, lhe disse: "Assim respondes tu a meu arquidiácono, moleque perverso? Pois sabe que vou humilhar-te!" Lhe trouxeram então dois galhos de salgueiro, e fazendo que o jovem, que não opus resistência alguma, se ajoelhasse frente a um longo banco numa enramada de seu jardim, o acoitou até que se viu obrigado a cessar por falta-lhe o alento e estar exausto uma das varas ficou totalmente destroçada.
Muitos outros sofrimentos parecidos padeceu Hinshaw em mãos do bispo; este, ao final, para eliminá-lo, se conseguiu falsas testemunhas que apresentassem falsas acusações contra ele, todas as quais o jovem negou, e, em resumo, se negou a responder a nenhum interrogatório que lhe fizeram. Quinze dias depois disto, o jovem foi atacado por umas febres ardentes, e a petição de seu patrão, o senhor Pugston, do pátio da igreja de são Paulo, foi tirado, não duvidando o bispo que o havia procurado a morte de forma natural; contudo, permaneceu doente durante mais de um ano, e durante este tempo morreu a Rainha Maria, ato da Providência pelo qual escapou da fúria de Bonner.
John Willes foi outra fiel pessoa sobre a qual caíram os açoites de Bonner. Era irmão de Richard Willes, já mencionado, que foi amo em Brentford. Hinshaw e Willes foram encerrados juntos na carvoeira de Bonner, e depois levados a Fulham, onde ele e Hinshaw permaneceram durante oito ou dez dias em cepos. O espírito perseguidor de Bonner se manifestou no tratamento que aplicou a Willes durante seus interrogatórios, batendo-lhe freqüentemente na cabeça com uma vara, puxando-o das orelhas e batendo-lhe embaixo do queixo, dizendo que baixava a cabeça como um bandido. Ao não conseguir com isto nenhum indício de abjuração, o levou ao arvoredo, e ali, sob uma enramada, o acoitou até que ficou exausto. Esta cruel ferocidade a suscitou uma resposta do coitado jovem, que ao perguntar-se-lhe quanto tempo fazia que não tinha acudido de joelhos ante um crucifixo, disse que "não o tenho feito desde a idade da razão, nem o farei ainda que me despedacem com cavalos indômitos". Bonner então o mandou fazer o sinal da cruz sobre a testa, o qual ele recusou, e então o levou ao arvoredo.
Um dia, enquanto Willes estava no cepo, Bonner lhe perguntou se estava gostando de seu alojamento e comida. "Bom seria", repus ele, "ter algo de palha sobre a qual sentar-me ou deitar-me". Justo nesse momento entrou a mulher de Willer, então num avançado estado de gravidez, rogando-lhe ao bispo por seu marido, e dizendo-lhe valorosamente que pariria ali se não lhe permitia a seu marido acompanhá-la a sua própria casa. Para livrar-se da importunidade da boa mulher, e dos problemas de uma parturiente na casa, disse a Willes que fizesse o sinal da cruz e que dissesse: "In nomine Patris, et Filli, et Spriritus Sancti, Amém". Willes omitiu o sinal, e repetiu as palavras: "Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, Amém". Bonner quis que repetisse as palavras em latim, ao que Willes não fez objeção, ao conhecer o significado das palavras. Depois lhe permitiu que fosse a sua casa com sua mulher, sendo encarregado seu parente Robert Rouze de levá-lo a são Paulo no dia seguinte, aonde foi por si mesmo, e assinando um banal documento latino, foi deixado em liberdade. Ele foi o último dos vinte e dois apreendidos em Islington.
O reverendo Richard Yeoman
Este devoto ancião era vigário do doutor Taylor, em Hadley, e estava sumamente qualificado para sua sagrada função. O doutor Taylor lhe deixou o vicariato ao ir embora, mas tão logo como o senhor Newall recebeu o cargo depus o senhor Yeoman, colocando em seu lugar a um sacerdote romanista. Depois disto, o senhor Yeoman foi de lugar em lugar, exortando a todos os homens a manter-se firmes na Palavra de Deus, a dar-se fervorosamente à oração, com paciência para suportar a cruz que agora se colocava sobre eles para sua provação, com valor para confessar a vida futura diante de seus adversários, e com uma esperança firme para esperar a coroa e a recompensa da felicidade eterna. Mas quando viu que seus adversários estavam perseguindo-o, se dirigiu a Kent, e com um pequeno pacote de rendas, agulhas, botões e outras mercadorias foi de povoado em povoado, vendendo estes artigos, e subsistindo desta maneira e mantendo a sua mulher e seus filhos.
Finalmente, o juiz Moile, de Kent, apreendeu o senhor Yeoman, e o colocou no cepo um dia e uma noite; mas, não tendo nada concreto de que acusá-lo, o deixou livre. Voltando ele em secreto a Hadley, ficou com sua coitada mulher, que o ocultou numa câmera do ajuntamento, chamado o Guildhall, durante mais de um ano. Durante este tempo o bom e ancião pai estava encerrado numa estância todo o dia, passando o tempo em devota oração, na leitura das Escrituras e em cardar a lã que sua mulher tecia. Sua mulher também pedia pão para ela e seus filhos, e com estes precários meios se sustentavam. Assim, os santos de Deus padeciam fome e miséria, enquanto os profetas de Baal viviam em banquetes e eram custosamente obsequiados na mesa de Jezabel.
Ao ser Newall finalmente informado de que Yeoman estava sendo escondido por sua mulher, este acudiu, assistido com soldados, e violentou a estância onde estava o objeto de sua busca, em cama com sua mulher. Censurou a pobre mulher de ser uma prostituta, e teria arrancado as roupas da cama de forma indecente, mas Yeoman resistiu tanto este ato de violência como o ataque contra o bom caráter de sua mulher, agregando que desafiava o Papa e o papismo. Foi logo tirado para fora e colocado num cepo até se fazer de dia.
Na gaiola na qual foi colocado estava também um ancião chamado John Dale, que tinha estado ali três ou quatro dias, por ter exortado o povo durante o tempo em que Newall e seu vigário estavam celebrando a liturgia. Suas palavras foram: "Oh, guias cegos e miseráveis"! Sereis por sempre cegos guias de cegos? Não ireis corrigir-vos nunca? Não querereis ver a verdade da Palavra de Deus? Não entrarão em vossos corações nem as ameaças nem as promessas de Deus? Não suavizará o sangue dos mártires vossas pétreas entranhas? Ah, geração endurecida, de duro coração, perversa e torcida, a qual nada pode fazê-lhe bem!"
Estas palavras as pronunciou no fervor de seu espírito contra a supersticiosa religião de Roma; por isso, Newall o fez apreender de imediato e colocar o cepo numa gaiola, onde foi guardado até que chegou o juiz Sir Henry Dolle a Hadley.
Quando Yeoman foi tomado, o pároco pediu persistentemente a Sir Henry Doile que enviasse ambos à prisão. Sir Henry Doile pediu-lhe, igual de insistentemente, que considerasse a idade dos homens, e sua mísera condição; não eram nem pessoas destacadas, nem predicadores; por isso propus deixá-los castigados um ou dois dias, e soltá-los, pelo menos a John Dale, que não era sacerdote, e que por isso, como tinha estado já tanto tempo na gaiola, considerava fosse um castigo suficiente para sua idade. Quando o pároco ouviu isto, montou em cólera, e fora de si de raiva os acusou de hereges fedorentos, indignos de viver num estado cristão.
Temendo Sir Henry mostrar-se demasiado misericordioso, Yeoman e Dale foram maniatados, amarrados como bandidos com suas pernas sob os ventres de cavalos, e levados ao cárcere de Bury, onde foram carregados de ferros; e devido a que de contínuo repreendiam o papismo, foram metidos na masmorra mais profunda, onde John Dale, pela doença carcerária e os maus-tratos, morreu pouco tempo depois. Seu cadáver foi jogado fora e sepultado nos campos. Morreu aos sessenta e seis anos. sua profissão era tecelão, e era bom conhecedor sas Sagradas Escrituras, e firme em sua confissão das verdadeiras doutrinas de Cristo tal como tinham sido expostas em tempos do rei Eduardo. Por elas padeceu prisão e correntes, e desde este cárcere terreno partiu para estar com Cristo na glória eterna, e o bendito paraíso da felicidade que não conhece fim.
Depois da morte de Dale, Yeoman foi levado ao cárcere de Norwich, onde, após sofrer um tratamento muito duro, foi interrogado acerca de sua fé, e se exigiu que se submetesse ao santo padre, o Papa. "O reto (disse ele), e desafio todas suas detestáveis abominações; não terei nada a ver com ele em absoluto". As principais acusações de que foi objeto foram seu matrimônio e sua rejeição do sacrifício da missa. Ao vê-lo que continuava firme na verdade, foi condenado, degradado e não somente queimado, senão também muito cruelmente atormentado no fogo. Assim terminou ele esta pobre e miserável vida, e entrou no bem-aventurado seio de Abraão, gozando com Lázaro daquele repouso que Deus dispus para Seus escolhidos.
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