CAPÍTULO 16 - Perseguições na Inglaterra durante o reinado da Rainha Maria
A prematura morte do célebre e jovem monarca Eduardo IV causou acontecimentos do mais extraordinários e terríveis que jamais tiveram lugar desde os tempos da encarnação de nosso bendito Senhor e Salvador em forma humana. Este triste acontecimento se converteu logo em tema de geral lamentação. A sucessão ao trono britânico chegou a ser objeto de disputa, e as cenas que se sucederam foram uma demonstração da séria aflição na que estava envolvido o reino. Conforme foram desenvolvendo-se mais e mais as conseqüências desta perda para a nação, a lembrança de seu governo veio a ser mais e mais um motivo de gratidão generalizada. A terrível expectativa que em seguida se apresentou aos amigos da administração de Eduardo, sob a direção de seus conselheiros e servos, veio a ser algo que as mentes reflexivas se viram obrigadas a contemplar com a mais alarmada apreensão. A rápida aproximação que se fez a uma total inversão das atuações do reinado do jovem rei mostrava os avanços que deste modo iam rumo a uma resolução total na direção das questões públicas tanto na Igreja como no estado.
Alarmados pela condição na que provavelmente ficaria implicado o reino pela morte do rei, a tentativa por impedir as conseqüências, que se viam sobrevir com muita claridade, produziu os mais sérios e fatais efeitos. O rei, em sua longa e prolongada doença, foi induzido a fazer testamento, no qual outorgava a coroa inglesa a Lady Jane, filha do duque de Suffolk, quem estava casada com LordeGuilford, filho do duque de Northumberland, e que era neta da segunda irmã do rei Henrique, casada com Carlos, duque de Suffolk. Por este testamento se passou por alto a sucessão de Maria e Elizabete, suas duas irmãs, pelo temor à volta ao sistema do papado; e o conselho do rei, com os chefes da nobreza, o alcaide maior da cidade de Londres, e quase todos os juízes e os principais legisladores do reino, assinaram seus nomes neste documento, como sanção a esta medida. O Lordeprincipal da Justiça, embora um verdadeiro protestante e reto juiz, foi o único em negar-se a colocar seu nome em favor de Lady Jane, porque já havia expressado sua opinião de que Maria tinha direito de tomar as rédeas do governo. Outros objetavam que Maria fosse colocada no trono, pelos temores que tinham de que pudesse casar com um estrangeiro, e com isso pôr a coroa em considerável perigo. Também a parcialidade que ela demonstrava em favor do papismo deixava bem poucas dúvidas nas mentes de muitos de que seria induzida a reavivar os interesses do Papa e a mudar a religião que tinha sido usada nos dias de seu pai, o rei Henrique, como nos de seu irmão Eduardo; porque durante todo este tempo tinha ela manifestado uma grande teimosia e inflexibilidade, como será evidente em base à carta que enviou aos lorde s do conselho, pela qual apresentou seus direitos à coroa após a morte de seu irmão.
Quando esta teve lugar, os nobres, que se haviam associado para impedir a sucessão de Maria, e que tinham sido instrumentos em promover e talvez aconselhar as medidas de Eduardo, passaram rapidamente a proclamar a Lady Jane Gray como rainha da Inglaterra, na cidade de Londres e em várias outras cidades populosas do reino. Embora era jovem, possuía talentos de natureza superior, e seu aproveitamento sob um mui excelente tutor tinha-lhe dado grandes vantagens.
Seu reinado durou somente cinco dias, porque Maria, conseguindo a coroa por meio de falsas promessas, empreendeu rapidamente a execução de suas expressas intenções de extirpar e queimar a cada protestante. Foi coroada em Westminster da maneira usual, e sua ascensão foi o sinal para o início da sangrenta perseguição que teve lugar.
Tendo obtido a espada da autoridade, não foi remissa a empregá-la. Os partidários de lady Jane Gray estavam destinados a sentir sua força. O duque de Northumberland foi o primeiro em experimentar seu selvagem ressentimento. Depois de um mês de encerro na Torre foi condenado, e levado ao cadafalso para sofrer como traidor. Devido à variedade de seus crimes provocados por uma sórdida e desmesurada ambição, morreu sem que ninguém se compadecesse dele nem o lamentasse.
As mudanças que se sucederam com toda celeridade declararam de maneira inequívoca que a rainha era pouco afeiçoada ao atual estado da religião. O doutor Poynet foi afastado para dar lugar a Gardiner como bispo de Winchester, o qual recebeu também o importante posto de LordeChanceler. O doutor Ridley foi expulso da sede de Londres, e Bonne colocado em seu lugar. J. Story foi banido do bispado de Chichester, para pôr ali o doutor Day. J. Hooper foi enviado predo a Fleet, e o doutor Heath instalado na sede de Worcester. Miles Coverdale foi também efastado de Exeter, e o doutor Vesie tomou seu lugar naquela diocese. O doutor Tonstail foi também ascendido à sede de Durham. Ao observar-se e indicar-se estas modificações, foram oprimindo-se e turbando-se mais e mais os corações dos bons homens; mas os malvados se regozijavam. Aos mentirosos tanto dava como fosse a questão; mas àqueles cujas consciências estavam ligadas à verdade perceberam como se acendiam as fogueiras que depois deveriam servir para destruição de tantos verdadeiros cristãos.
As palavras e a conduta de lady Jane Gray no cadafalso
A seguinte vítima foi a gentil lady Jane Gray, que, por sua aceitação da coroa ante as insistentes petições de seus amigos, incorreu no implacável ressentimento de Maria. Ao subir no cadafalso, se dirigiu com estas palavras aos espectadores: "Boa gente, vim aqui para morrer, e por uma lei tenho sido condenada a isso. O fato contra a majestade da rainha era ilegítimo, e que eu acedesse a isso; porém acerca da tomada de decisão e o desejo do mesmo por minha parte ou em meu favor, me lavou neste dias as mãos em minha inocência diante de Deus e diante de vós, boa gente cristã". E fez então o movimento de esfregar-se as mãos, nas que tinha seu livro. Depois disse: "Peço-vos a todos, boa gente cristã, que me sejais testemunhas de que morro como boa cristã, e que espero ser salva somente pela misericórdia de Deus no sangue de seu único Filho Jesus Cristo, e não por nenhum outro médio; e confesso que quando conheci a Palavra de Deus a descuidei, amando-me a mim mesma e ao mundo, e por isso felizmente e com merecimento me sobreveio esta praga e castigo; porém dou graças a Deus que em sua bondade me deu desta maneira tempo e descanso para arrepender-me. E agora, boa gente, enquanto estou viva, rogo-vos que me auxilieis com vossas orações". Depois, ajoelhando-se, se dirigiu a Feckenham, dizendo-lhe: "Direi este Salmo?", e ele disse: "SIM". Então pronunciou o Salmo Miserere meu Deus em ingles, da forma mais devota até o final; depois se levantou, e deu a sua dama, a senhora Ellen, suas luvas e seu lenço, e seu livro ao senhor Bruges; depois desamarrou seu vestido, e o carrasco se aproximou para ajudá-la a tirá-lo; mas ela, pedindo-lhe que a deixasse sozinha, se voltou para suas duas damas, que a ajudaram a tirá-lo, e também lhe deram um bonito lenço com o qual vendar seus olhos.
Depois o carrasco se ajoelhou, e lhe pediu perdão, dando-o ela bem disposta. Depois pediu-lhe que ficasse de pé sobre a palha, e ao fazê-lo viu o talho. Então disse: "Rogo-te que acabes comigo rapidamente". Depois se ajoelhou, dizendo: "Me decapitarás antes que a estique?" E o verdugo disse: "Não, senhora". Então se vendou os olhos, e tateando para achar o talho, disse: "Que vou fazer? Onde está, onde está?". Um dos que ali estavam a conduziu, e ela pus a cabeça sobre o talho, e depois disse: "Senhor, em tuas mãos encomendo meu espírito". Assim acabou sua vida, no ano do Senhor de 1554, o 12 de fevereiro, tendo por volta de dezessete anos.
Assim morreu lady Jane; e naquele mesmo dia foi decapitado lorde Guilford, seu marido, um dos filhos do duque de Northumberland; eram dois inocentes em comparação com aqueles que estavam sobre eles. Porque eram muito jovens, e aceitaram ignorantemente aquilo que outros haviam tramado, consentindo que por proclamação pública fosse arrebatado para outros o que lhes fora dado a eles.
Acerca da condenação desta piedosa dama, deve lembrar-se que o juiz Morgan, que pronunciou sentença contra ela, caiu louco depois de tê-la condenado, e em seus delírios clamava continuamente que tiraram a lady Jane de diante dele, e assim acabou sua vida.
O 21 do mesmo mês, Henrique, duque de Suffolk, foi decapitado na Torre, o quarto dia depois de sua condena; naquele mesmo tempo muitos cavalheiros e fidalgos foram condenados, dos quais alguns foram executados em Londres, e outros em outros condados. Entre eles se encontrava lorde Tomás Gray, irmão do duque de Suffolk, que foi apresado não muito tempo depois no norte de Gales, e executado pela mesma causa. Sir Nicolas Throgmorton escapou muito apressadamente.
John Rogers, vicário do Santo Sepulcro, e leitor de são Paulo em Londres
John Rogers se educou em Cambridge, e foi depois muitos anos capelão dos mercadores empurrados a Amberes, em Brabante. Ali conheceu o célebre mártir William Tyndale, e a Miles Coverdale, ambos voluntariamente exilados de seu país por sua aversão à superstição e idolatria papal. Eles foram os instrumentos de sua conversão, e se uniu com eles na produção daquela tradução da Bíblia ao inglês conhecida como a "Tradução de Tomás Mathew". Pelas Escrituras soube que os votos ilegítimos podiam ser legitimamente quebrantados; por isso se casou e se dirigiu a Wittenberg, na Saxônia, para aumentar seus conhecimentos; ali aprendeu a língua alemã, e recebeu o encargo de uma congregação, cargo que desempenhou fielmente durante muitos anos. ao aceder o rei Eduardo ao trono, se foi a Saxônia para impulsionar a obra da Reforma na Inglaterra. Após um tempo, Nicolas Ridley, que era então o bispo de Londres, o fez canônigo da catedral de são Paulo, e o decano e o capítulo o designaram leitor da lição de teologia. Ali continuou até o Ascenso ao trono da rainha Maria, quando foram desterrados o Evangelho e a verdadeira religião, e introduzido o Anticristo de Roma, com sua superstição e idolatria.
A circunstância pela qual o senhor Rogers predicou em Paul's Cross depois que a rainha Maria chegasse à Torre, já foi relatada. Confirmou ele em seus sermões a doutrina ensinada na época do rei Eduardo, exortando o povo a guardar-se da abominação do papismo, da idolatria e da superstição. Por esta razão foi chamado a dar conta, mas se defendeu de maneira tão capaz que foi pelo momento libertado. Mas a proclamação da rainha proibindo a verdadeira predicação deu a seus inimigos um novo pretexto contra ele. Por isso, foi chamado de novo ante o conselho, e se ordenou seu arresto domiciliário. Ficou então em sua casa, embora houvesse podido escapar e foi quando viu que o estado da verdadeira religião era desesperado. Sabia que não lhe faltaria um salário na Alemanha; e não podia esquecer sua mulher nem seus dez filhos, nem deixar de tentar obter os meios para suprir suas necessidades. Mas todas estas coisas foram insuficientes para induzi-lo a ir embora, e, quando foi chamado a responder a causa de Cristo, a defendeu firmemente, e pus sua vida em perigo por esta causa.
Depois de um longo encarceramento em sua própria casa, o agitado Bonner, bispo de Londres, o fez encerrar em Newgate, lançando-o em companhia de ladrões e assassinos.
Depois que o senhor Rogers tiver sofrido um estrito encarceramento durante um longo tempo, entre ladrões, e tendo sofrido muitos interrogatórios e um tratamento muito pouco caritativo, foi finalmente condenado da forma mais injusta e cruel por Stephen Gardiner, bispo de Winchester, o 4 de fevereiro de 1555. Uma segunda-feira pela manhã, foi repentinamente advertido pelo guarda de Newgate que se preparasse para a fogueira. Estava profundamente dormido, e lhes deu muito trabalho acordá-lo. ao final, desperto e levantado, ao ser apressado, disse: "Se é assim, não há necessidade de amarrar-me os sapatos". Assim o levaram, primeiro ao bispo Bonner, para que o degradasse. Feito isto, lhe fez um único pedido ao bispo Bonner, e este lhe perguntou de que se tratava. O senhor Rogers lhe pediu para falar um breve tempo com sua mulher antes de ser queimado; porém o bispo se negou.
Quando chegou o momento de ser levado de Newgate a Smithfield, onde seria executado, um xerife chamado Woodroofe se aproximou do senhor Rogers e lhe perguntou se queria desdizer-se de sua abominável doutrina e da má opinião acerca do Sacramento do altar. O senhor Rogers respondeu: "O que tenho predicado o selarei com meu sangue". Então Woodroofe lhe disse: "Tu és um herege". "Isto se saberá", replicou o senhor Rogers "no Dia do Juízo". "Bem", disse Woodroofe, "nunca orarei por ti". "Porém eu sim orarei por ti", disse-lhe o senhor Rogers; assim foi tirado naquele mesmo dia, o 4 de fevereiro, e levado pelos xerifes até Smithfield, dizendo pelo caminho o Salmo Miserere, e deixando o povo surpreendido com sua inteireza, dando louvores a Deus e gratidão por tudo. Ali, em presença do senhor Rochester, controlador da Casa da Rainha, de Sir Richard Sothwell, ambos xerifes e uma grande multidão, foi reduzido a cinzas, lavando-se as mãos na chama enquanto ardia. Pouco antes de ser queimado lhe trouxeram o indulto, caso se desdissesse; mas negou-se de forma total. Ele foi o primeiro mártir de toda a bendita companhia que sofreu em tempos da Rainha Maria. Sua mulher e filhos, onze em total, dez que podiam caminho e um bebê de peito, foram vê-lo no caminho, enquanto se dirigia a Smithfield. O triste espetáculo de ver sua própria carne e sangue não o moveu, contudo, a debilidade, senão que aceitou sua morte com constância e ânimo, em defesa e na batalha do Evangelho de Cristo.
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