O arcebispo Cranmer
O doutor Tomás Cranmer descendia de uma antiga família, e nasceu no povo de Arselacton, no condado de Northampton. Depois da usual educação escolar, foi enviado a Cambridge, e escolhido companheiro do Jesus College. Ali casou com a filha de um cavalheiro, pelo que perdeu sua condição de companheiro, e passou a ser leitor em Buckingham College, instalando a sua mulher em Dolphin Inn, sendo a patroa uma parenta dela, de onde se suscitou o falso rumor de que ele era um moço de cavalariça. Ao morrer sua mulher pouco depois, de parto, foi escolhido, para seu crédito, de novo como companheiro do colégio antes mencionado. Poucos anos depois foi elevado a professor de Teologia, e designado como um dos examinadores daqueles que estavam já prontos para ser Bachareles ou Doutores em Divindade. Era princípio seu julgar as qualificações com base mais no conhecimento que possuíam das Escrituras, que no que conheciam dos antigos padres, e por isto muitos sacerdotes papistas foram rejeitados, e outros obtiveram grandes vantagens.
Foi intensamente solicitado pelo doutor Capon para que fosse um dos companheiros na fundação do colégio do cardeal Wolsey, em Oxford, cargo que aventurou recusar. Enquanto continuou em Cambridge, se suscitou a questão do divórcio de Henrique VIII com Catarina. Naquele tempo, por causa da peste, o doutor Cranmer foi morar à casa de um tal senhor Cressy, em Waltham Abbey, cujos dois filhos foram então educados sob sua supervisão. A questão do divórcio, em contra da aprovação do rei, tinha ficado indecisa por mais de dois ou três anos, devido às intrigas dos canônigos e civis, e embora os cardeais Campeius e Wolsey foram comissionados por Roma para decidir acerca desta questão, retardaram a sentença a propósito.
Aconteceu que o doutor Gardiner (secretário) e o doutor Fox, defensores do rei neste pleito, foram à casa do senhor Cressy para alojar-se ali, enquanto o rei se alojava em Greenwich. Durante o jantar, se manteve uma conversação com o doutor Cranmer, que sugeriu que a questão de se um homem podia casar com a mulher de seu irmão ou não, podia resolver-se de forma rápida recorrendo à Palavra de Deus, e isto tanto nos tribunais ingleses como nos de qualquer nação estrangeira. O rei, inquieto ante esta demora, enviou a buscar o doutor Gardiner e o doutor Fox para consultá-los, lamentando ter que enviar outra comissão a Roma e que a questão continuasse assim dilatada sem fim. Ao contar ao rei da conversação mantida na noite anterior com o doutor Cranmer, sua majestade mandou buscá-lo, e lhe comunicou os escrúpulos de consciência acerca de seu próximo parentesco com a rainha. O doutor Cranmer aconselhou que a questão fosse remitida aos mais eruditos teólogos de Cambridge e Oxford, porquanto se sentia remisso a misturar-se com uma questão tão importante; porém o rei lhe ordenou que lhe desse seu parecer por escrito, e dirigir-se para isso ao conde de Wiltshire, que o proveria de livros e de tudo o necessário.
O senhor Cranmer obedeceu de imediato, e em sua declaração citou não só a autoridade das Escrituras, dos Concílios gerais, e dos antigos escritores, senão que manteve que o bispo de Roma não tinha autoridade alguma para deixar de lado a Palavra de Deus. O rei lhe perguntou se manter-se-ia nesta atrevida declaração, e ao responder ele em sentido afirmativo, foi enviado como embaixador a Roma, junto com o duque de Wiltshire, o doutor Stokesley, o doutor Bennet e outros, antes do qual se tratou acerca daquele matrimônio na maior parte das universidades da cristandade e dentro do reino.
Quando o Papa apresentou o polegar de seu pé para ser beijado, segundo era o costume, o conde de Wiltshire e sua companhia recusaram fazê-lo. inclusive se afirma que o cachorro spaniel do conde, atraído pelo brilho do polegar do Papa, o mordeu, com o qual sua Santidade retirou seu sagrado pé, dando um chute ao ofensor com o outro.
Ao demandar o Papa a causa desta embaixada, o conde apresentou o livro do doutor Cranmer, declarando que seus eruditos amigos tinham vindo a defendê-lo. o Papa tratou honrosamente a embaixada e marcou um dia para a discussão, que depois retrasou, como temendo o resultado da pesquisa. O conde voltou, e o doutor Cranmer, por desejo do rei, visitou o imperador, e logrou atraí-lo a sua opinião. Ao voltar o doutor a Inglaterra e morrer o doutor Warham, arcebispo de Canterbury, o doutor Cranmer foi merecidamente elevado, por desejo do doutor Warham mesmo, àquela iminente posição.
Nesta função pode dizer-se que cumpriu diligentemente o encargo de são Paulo. Diligente no cumprimento de seus deveres, acordava às cinco da manhã e prosseguia no estudo e oração até as nove; entre então e a comida se dedicava às questões temporais. Depois da comida, se alguém solicitava uma audiência, decidia suas questões com tal afabilidade que inclusive os que recebiam decisões contrárias não se sentiam totalmente frustrados. Depois jogava xadrez por uma hora, ou contemplava como outros jogavam, a às cinco ouvia a Oração Comum, e desde então até o jantar se recreava passeando. Durante seu jantar sua conversação era vivaz e entretida; de novo passeava ou se entretinha até as nove, e depois se dirigia a seu escritório.
Teve a mais alta estima e favor do rei Henrique, e sempre teve dentro de seu coração a pureza e os interesses da Igreja de Inglaterra. Seu temperamento manso e perdoador se registra com o seguinte exemplo: um sacerdote ignorante, no campo, tinha chamado a Cranmer de moço de cavalariça, e se havia referido de forma muito depreciativa à sua cultura. Ao sabê-lo lorde Cromwell, aquele homem foi enviado ao cárcere do fleet, e seu caso foi apresentado diante do arcebispo por um tal senhor Chertsey, um mercador, parente do sacerdote. Sua graça, fazendo chamar o ofensor, arrazoou com ele e pediu ao sacerdote que lhe perguntasse sobre qualquer assunto de erudição. A isto se negou o homem, vencido pela cordialidade do arcebispo e sabendo de sua própria e patente incapacidade, e lhe pediu perdão, que lhe foi concedido de imediato, com a ordem de que empregasse melhor seu tempo quando voltasse a sua paróquia. Cromwell sentiu-se muito ofendido pela indulgência mostrada, mas o bispo estava mais disposto a receber insultos que a vingar-se de qualquer outra maneira que com bons conselhos e bons ofícios.
Para o tempo em que Cranmer foi ascendido a arcebispo, era capelão do rei e arquidiácono [1] de Taunton; foi também constituído pelo Papa penitenciário geral da Inglaterra. O rei considerou que Cranmer seria obsequioso, e por isso este casou o rei com Ana Bolena, celebrou a coroação dela, foi padrinho de Elizabete, o primeiro fruto do matrimônio, e divorciou o rei de Catarina. Embora Cranmer fosse confirmado em sua dignidade pelo Papa, sempre protestou contra reconhecer qualquer outra autoridade que a do rei, e persistiu nos mesmos sentimentos de independência quando foi feito comparecer ante os comissionados de Maria em 1555.
Um dos primeiros passos após o divórcio foi impedir a predicação em toda sua diocese, mas esta estreita medida tinha uma finalidade mais política que religiosa, porquanto havia muitos que denegriam a conduta do rei. Em sua nova dignidade, Cranmer suscitou a questão da supremacia, e com seus argumentos poderosos e justos induziu o parlamento a "dar ao César o que é do César". Durante a residência de Cranmer na Alemanha em 1531 conheceu a Osiandro em Nuremberg, e casou com sua sobrinha, mas a deixou com ele ao voltar a Inglaterra. Depois de um tempo a fez vir privadamente, e ficou com ele até o ano 1539, quando os Seis Artigos o obrigaram a devolvê-la a seus amigos por um tempo.
Deveríamos lembrar que Osiandro, tendo logrado a aprovação de seu amigo Cranmer, publicou a laboriosa obra da Harmonia dos Evangelhos em 1537. Em 1534, o arcebispo alcançou o mais querido objetivo de seu coração, a eliminação de todos os obstáculos para a consumação da Reforma, mediante a subscrição por parte dos nobres e dos bispos à única supremacia do rei. Somente se opuseram o bispo Fisher e Sir Tomás More. Cranmer estava disposto a considerar suficiente o acordo deles a não opor-se à sucessão, mas o monarca queria uma concessão total.
Não muito tempo depois, Gardiner, numa conversação privada com o rei, falou mal de Cranmer (a quem odiava malignamente), por ter aceitado o título de primado de toda a Inglaterra, como depreciativo da supremacia do rei. Isto suscitou fortes ciúmes contra Cranmer, e sua tradução da Bíblia foi fortemente oposta por Stokesley, bispo de Londres. Se diz que ao ser despedida a Rainha Catarina, sua sucessora Ana Bolena se gozou. Isto é uma lição de quão superficial é o juízo humano, porquanto a execução desta última teve lugar na primavera do ano seguinte, e o rei, no dia seguinte da decapitação desta dama sacrificada, casou com a bela Jane Seymour, dama de honra da defunta rainha. Cranmer foi sempre amigo de Ana Bolena, mas era perigoso opor-se à vontade daquele tirânico e carnal monarca.
Em 1538 se expuseram publicamente as Sagradas Escrituras para a venda, e os lugares de culto se enchiam de multidões para escutar a exposição de suas santas doutrinas. Ao passar o rei como lei os famosos Seis Artigos, que voltavam de novo quase a estabelecer os artigos essenciais do credo romanista, Cranmer resplandeceu com todo o brilho de um patriota cristão, resistindo as doutrinas contidas neles, no que foi apoiado pelos bispos de Sarum, Woreester, Ely e Rochester, demitindo os dois primeiros de seus bispados. O rei, embora agora oposto a Cranmer, continuava reverenciando a sinceridade que marcava sua conduta. A morte do bom amigo de Cranmer, lorde Cromwell, na Torre em 1540, foi um forte golpe para a vacilante causa protestante, porém inclusive agora, ainda vendo a maré contrária total à causa de verdade, Cranmer se apresentou pessoalmente ante o rei e conseguiu, com seus varonis e cordiais argumentos, que o Livro dos Artigos fosse deixado de lado, para confusão de seus inimigos, que tinham considerado sua queda como inevitável.
Cranmer viveu agora de um modo tão escuro como lhe foi possível, até que o rancor de Winchester o levou à apresentação de umas denúncias contra ele,a respeito das perigosas opiniões ensinadas em sua família, junto com outras acusações de traição. Estas as apresentou o Pai rei a Cranmer, e acreditando firmemente na fidelidade e nos protestos de inocência do acusado prelado, fez investigar a fundo a questão, e se descobriu que Winchester o doutor Lenden, junto com Thompton e Barber, dois domésticos do bispo, resultaram, por papéis obtidos, ser os verdadeiros conspiradores. O gentil e perdoador Cranmer teria gostado de interceder por toda remissão de castigo se Henrique, comprazido com o subsídio votado pelo Parlamento, não os tivesse deixado livres. Mas estes nefastos homens voltaram iniciar suas tramas contra Cranmer, caindo vítimas do ressentimento do rei, e Gardiner perdeu para sempre sua confiança. Sir G. Gostwick apresentou pouco depois acusações contra o arcebispo, que Henrique esmagou, e que o primado esteve disposto a perdoar.
Em 1544 foi queimado o palácio arzobispal de Canterbury, e seu cunhado e outros morreram no incêndio. Estas várias aflições podem servir-nos para reconciliar-nos com um humilde estado, porque, de que felicidade podia vangloriar-se este homem, porquanto sua vida estava sendo constantemente carregada, bem com cruzes políticas, religiosas ou naturais? Outra vez o implacável Gardiner apresentou graves acusações contra o manso arcebispo, e teria desejado mandá-lo à Torre; porém o rei era seu amigo, lhe deu seu selo para defender-se, e no Conselho não somente declarou que o bispo era um dos homens de melhor caráter de seu reino, senão que repreendeu azedamente os acusadores por sua calúnia.
Tendo-se assinado a paz, Henrique e o rei francês Henrique o Grande mostraram unanimidade na abolição da missa em seus reinos, e Cranmer se lançou nesta grande tarefa; porém a morte do monarca inglês em 1546 levou à suspensão desta ação, e o rei Eduardo VI, seu sucessor, confirmou a Cranmer nas mesmas funções; em sua coroação lhe encomendou uma tarefa que sempre honrará sua memória, por sua pureza, liberdade e verdade. Durante este reinado continuou efetuando a gloriosa Reforma com um zelo incansável, até no ano 1552, quando se viu açoitado por umas severas febres, aflição da qual aprouve a Deus restaurá-lo, para que pudesse testemunhar com sua morte da verdade daquela semente que havia plantado tão diligentemente.
A morte de Eduardo, em 1553, expus a Cranmer a toda a fúria de seus inimigos. Embora o arcebispo estava entre os que haviam apoiado a ascensão de Maria, foi arrestado ao reunir-se o parlamento, e em novembro foi declarado culpável de alta traição em Guildhall, e degradado de suas dignidades. Enviou uma humilde carta a Maria, explicando a causa de sua assinatura do testamento em favor de Eduardo, e em 1554 escreveu ao Conselho, a quem pressionou a pedir perdão à rainha, mediante uma carta entregada ao doutor Weston, mas este a abriu e, ao ler seu conteúdo, cometeu a baixeza de devolvê-la.
A traição era uma acusação totalmente inaplicável contra Cranmer, quem havia apoiado o direito da rainha, enquanto outros, que haviam favorecido a lady Jane foram liberados mediante o pagamento de uma pequena multa. Agora se espalhou contra Cranmer uma calúnia de que havia acedido a certas cerimônias papistas para congraçar-se com a rainha, o que ousou negar em público, justificando seus artigos de fé. A ativa parte que o prelado tivera no divórcio da mãe de Maria sempre tinha ficado profundamente encravada no coração da rainha, e a vingança foi um rasgo destacado na morte de Cranmer.
Nesta obra temos mencionado as disputas públicas em Oxford, nas que os talentos de Cranmer, Ridley e Latimer se mostraram de maneira tão patente, e que levaram à sua condena. A primeira sentença foi ilegal, porquanto o poder usurpado do Papa não tinha sido restabelecido de forma legal.
Deixados no cárcere até que isto esteve em último lugar, se enviou uma comissão desde Roma, designando o doutor Brooks como representante de Sua Santidade, e os doutores Story e Martin como os da rainha. Cranmer estava disposto a submeter-se à autoridade dos doutores Story e Martin, mas objetou a do doutor Brooks. Tais foram as observações e contestações de Cranmer, após um longo interrogatório, que o doutor Brooks comentou: "Viemos interrogar-vos a vós, e para que sois vós que nos interroga".
Enviado de novo a seu encerro, recebeu uma citação para comparecer em Roma após dezoito dias; mas isto lhe era impossível, porquanto estava encarcerado na Inglaterra, e como disse, ainda que tivesse estado livre, era demasiado pobre para pagar um advogado. Por absurdo que pareça, Cranmer foi condenado em Roma, e o 14 de fevereiro de 1556 se designou uma nova comissão pela qual foram estabelecidos Thirlby, bispo de Ely, e Bonner, de Londres, para agir em juízo em Christ Church, Oxford. Em virtude deste tribunal, Cranmer foi degradado gradualmente, colocando-lhe uns míseros farrapos para representar as vestes de um arcebispo. Tirando-lhe depois estas roupas, lhe arrancaram a própria toga, e lhe colocaram acima uma velha; isto o suportou imperturbável, e seus inimigos, ao ver que a severidade somente o deixava mais decidido, tentaram o caminho oposto, e o alojaram em casa do arquidiácono do Christ Church, onde foi tratado com todas as contemplações.
Isto constituiu tal contraste com os três anos de duro encerro que havia sofrido que lhe fez baixar a guarda. Seu natural aberto e generoso era mais susceptível a ser seduzido por uma conduta liberal que por ameaças e correntes. Quando Satanás vê a um cristão a prova contra todo ataque, tento outro. E que forma há mais sedutora que os sorrisos, as recompensas e o poder, depois de um encarceramento longo e penoso? Assim aconteceu com Cranmer; seus inimigos lhe prometeram sua anterior grandeza se se desdizia, e também o favor da rainha, e isto quando já sabiam que sua morte tinha sido decidida no Conselho. Para suavizar o caminho para a apostasia, o primeiro documento que lhe apresentaram para assinar estava redigido em termos gerais; uma vez assinado, outros cinco lhe foram sucessivamente apresentados como explicativos do primeiro, até que no final assinou este detestável documento: "Eu, Tomás Cranmer, anterior arcebispo de Canterbury, renuncio, aborreço e detesto toda forma de heresias e erros de Lutero e Zuínglio, e todos os outros ensinos contrários com a sã e verdadeira doutrinária. E creio com toda constância em meu coração, e confesso com minha boca, uma igreja santa e católica visível, fora da qual não há salvação; e por isso reconheço o bispo de Roma como o supremo cabeça na terra, a quem reconheço como o mais elevado bispo e Papa, e vicário de Cristo, a quem deveriam sujeitar-se todas as pessoas cristãs".
"No que respeita aos sacramentos, creio e adoro no sacramento do altar o corpo e o sangue de Cristo, contidos bem verdadeiramente sob as forma de pão e vinho; sendo o pão, pelo infinito poder de Deus, transformado no corpo de nosso Salvador Jesus Cristo, e o vinho em seu sangue".
"E nos outros seis sacramentos também (como neste) creio e mantenho como o mantém a Igreja universal, e como o julga e determina a Igreja de Roma".
"Creio também que há um lugar de purgação, onde as almas dos defuntos são desterradas por um tempo, pelas quais a Igreja ora piedosa e sadiamente, como também honra os santos e faz orações aos mesmos".
"Finalmente, em todas as coisas professo que não creio de outra forma que o que mantém e ensina a Igreja Católica e a Igreja de Roma. Sinto ter jamais mantido ou pensado coisa diferente. E rogo ao Deus Onipotente que em sua misericórdia me outorgue o perdão por tudo o que tenho ofendido contra Deus ou sua Igreja, e também desejo e rogo a todos os cristãos que orem por mim".
"E que todos os que têm sido enganados já por meu exemplo, já pela minha doutrina, lhes demando, pelo sangue de Jesus Cristo, que voltem à unidade da Igreja, para que todos sejamos de um pensar, sem cismas nem divisões".
"E para concluir, tal como me submeto à Católica Igreja de Cristo, e a sua suprema cabeça, do mesmo modo me submeto a suas mais excelentes majestades Felipe e Maria, rei e rainha deste reino de Inglaterra, etc., e a todas suas outras leis e decretos, estando sempre como fiel súbdito presto a obedecê-lhes. E Deus é testemunha que tenho feito isto não pelo favor ou temor de ninguém, senão voluntariamente, e por minha própria consciência, em quando a instruções de outros".
"O que pensa estar firme, olhe que não caia", disse o apóstolo, e esta foi certamente uma queda! Os papistas tinham agora triunfado de vez, obtendo dele tudo o que queriam aparte de sua vida. Sua retratação foi imediatamente impressa e dispersada, para que surtisse seu efeito sobre os atônitos protestantes. Mas Deus predominou sobre todos os desígnios dos católicos pela sanha com a que executaram implacáveis a perseguição de sua presa. É indubitável que o amor à vida foi o que induziu a Cranmer a assinar a anterior declaração; porém pode-se dizer que a morte teria sido preferível para ele que a vida, estando sob o aguilhão de uma consciência violada e do menosprezo de cada cristão evangélico; e esta ação a sentiu com toda sua força e angústia.
A vingança da rainha somente podia ser satisfeita com o sangue de Cranmer, e portanto ela escreveu uma ordem ao doutor Pole para que preparasse um sermão que devia ser predicado o 21 de março, diretamente antes do martírio, em St. Mary's, Oxford. O doutor Pole o visitou uns dias antes, e o induziu a acreditar que proclamaria publicamente suas crenças como confirmação dos artigos que tinha assinado. Por volta das 9 da manhã do dia da imolação, os comissionados da rainha, acompanhados pelos magistrados, levaram o gentil e infortunado homem à Igreja de St. Mary's. Seu hábito esfarrapado e sujo, o mesmo com o qual o vestiram quando o degradaram, excitou a compaixão da gente. Na igreja encontrou uma pobre e mísera plataforma, levantada justo diante do púlpito, onde o deixaram, e ali voltou o rosto e orou fervorosamente a Deus.
A igreja estava repleta de pessoas de ambas convicções, esperando ouvir uma justificação de sua recente apostasia; os católicos regozijando-se, e os protestantes profundamente feridos em seu espírito ante o engano do coração humano. O doutor Pole denunciou em seu sermão a Cranmer como culpável dos mais atrozes crimes; alentou o enganado sofredor a não temer a morte, nem a duvidar do apoio de Deus em seus tormentos, nem de que se diriam missas por ele em todas as igrejas de Oxford para o descanso de sua alma. Depois o doutor observou sua conversão, a qual atribuiu à evidente operação do poder do Onipotente, e a fim de que a gente se convencesse de sua realidade, pediu ao prisioneiro que lhes desse um sinal. E Cranmer o fez, rogando a congregação que orassem por ele, porque tinha cometido muitos e graves pecados; porém de todos eles havia um que gravitava pesadamente sobre ele, do qual falaria em breve.
Durante o sermão, Cranmer chorou amargas lágrimas, levantando as mãos e o olhar ao céu e deixando-as cair, como se indigno de viver; sua dor encontrou agora seu alívio nas palavras; antes de sua confissão caiu de joelhos, e com as seguintes palavras desvelou a profunda convicção e agitação que moviam sua alma.
"Oh, Pai do céu! Oh, Filho de Deus, Redentor do mundo! Oh, Espírito Santo, três pessoas num Deus! tem misericórdia de mim, o mais miserável dos covardes e pecadores. Pequei tanto contra o céu como contra a terra, mais do que minha língua possa expressar. Aonde posso ir, ou aonde posso fugir? Ao céu posso estar envergonhado de levantar meus olhos, e na terra não acho lugar onde refugiar-me nem quem me socorra. A ti, pois, corro, Senhor; ante ti me humilho, dizendo: oh, Senhor, meu Deus, meus pecados são grandes, mas tem misericórdia Tu de mim por tua grande misericórdia. O grande mistério de que Deus se fizesse homem não teve lugar por pequenas ou poucas ofensas. Tu não nos deste a teu Filho, ó Pai celestial, à morte somente por pequenos pecados, senão pelos maiores pecados do mundo, para que o pecador possa voltar a ti de todo coração, como eu o faço agora. Por isso, tem misericórdia de mim, oh, Deus, cuja qualidade é sempre ter misericórdia, tem misericórdia de mim, oh, Senhor, por tua grande misericórdia. Nada anelo por meus próprios méritos, senão por causa de teu nome, para que seja por isso santificado, e por causa de teu amado Filho, Jesus Cristo. E agora, pois, Pai nosso que estás no céu, santificado seja teu nome..." etc.
Depois, levantando-se disse que desejava antes de sua morte fazer algumas piedosas observações pelas que Deus pudesse ser glorificado, e eles mesmos edificados. Depois falou acerca do perigo do amor pelo mundo, do dever da obediência a suas majestades, do amor de uns pelos outros, e da necessidade de que os ricos ministrassem para as necessidades dos pobres. Citou os três versículos do quinto capítulo de Tiago, e então prosseguiu: "Que os ricos ponderem bem estas três sentenças: porque se jamais tiveram ocasião de mostrar sua caridade, a têm agora neste tempo presente, havendo tantos pobres, e sendo tão caros os alimentos".
"E agora, porquanto tem chegado o fim de minha vida, no qual pende toda minha vida passada e a minha vida vindoura, bem para viver com meu Senhor Cristo para sempre com gozo, ou bem para estar em penas sempiternas com os malvados no inferno, e enxergo agora com meus olhos, neste momento, o céu pronto para receber-me, ou o inferno prestes a engolir-me; por isso vos exporei minha própria fé que acredito, sem cores nem engano algum, porque não é agora o momento de enganar, seja o que for que tenha escrito em tempos passados".
"Primeiro, creio em Deus o Pai Onipotente, Criador dos céus e da terra, etc. e creio cada um dos artigos da fé católica, cada palavra e frase ensinada por nosso Salvador Jesus Cristo, seus apóstolos e profetas, no Novo e Antigo Testamento".
"E agora chego ao que tanto perturba minha consciência, mais que nada do que tenha feito ou falado em toda minha vida, e é a difusão de um escrito contrário à verdade que aqui agora renuncio e recuso como coisas escritas por minha mão em contra da verdade que pensava em meu coração, e escritas por temor à morte, e para salvar minha vida se isso for possível; e se trata de todos aqueles documentos e papéis escritos ou assinados por minha mão desde minha degradação nos que tenho escrito muitas coisas falsas. E porquanto minha mão tem ofendido, escrevendo em contra de meu coração, por isso minha mão será a primeira em ser castigada; porque quando chegue ao fogo será o primeiro em ser queimado".
"Em quanto ao Papa, o rejeito como inimigo de Cristo e Anticristo, com todas suas falsas doutrinas".
Ao concluir esta inesperada declaração, se respirava assombro e indignação em todos os cantos da igreja. Os católicos estavam totalmente confundidos, frustrados totalmente em seu intento, tendo Cranmer, a semelhança de Sansão, causado uma maior ruína sobre seus inimigos na hora da morte que em sua vida.
Cranmer teria desejado prosseguir em sua denuncia das doutrinas papistas, porém os murmúrios dos idólatras afogaram sua voz, e o predicador deu ordem de "Levai este herege!". A selvagem ordem foi obedecida diretamente, e o cordeiro a pastor de sofrer foi arrancado de sua plataforma para ser levado ao matadouro, xingado a todo o longo do caminho, injuriado e escarnecido por aquela praga de monges e frades.
Com os pensamentos centrados num objeto muito mais elevado que as vãs ameaças dos homens, chegou ao lugar maculado com o sangue de Ridley e Latimer. Ali se ajoelhou para um breve tempo de fervorosa devoção, e depois se levantou, para tirar a roupa e preparar-se para o fogo. Dois frades que tinham participado da operação de lograr sua abjuração trataram agora de voltar a afastá-lo da verdade, mas ele se mostrou firme e inamovível no que acabava de professar e de ensinar em público. Lhe colocaram uma corrente para amarrá-lo à estaca, e depois de tê-lo rodeado ferreamente com ela, acenderam a fogueira, e as labaredas começaram a subir.
Então se fizeram manifestos os gloriosos sentimentos do mártir, quem, estendendo sua mão direita, a manteve tenazmente sobre o fogo até ficar reduzida a cinzas, incluso antes que seu corpo fosse danificado, exclamando com freqüência: "Esta indigna mão direita!"
Seu corpo suportou a queima com tal firmeza que pareceu não mexer-se mais que a estaca a qual estava sujeito. Seus olhos estavam fixos no céu, enquanto repetia: "Esta indigna mão direita" durante o tempo que sua voz lhe permitiu, e empregando muitas vezes as palavras de Estevão, "Senhor Jesus, recebe meu espírito", entregou o espírito em meio de uma grande flama.
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