O martírio de João Calas
Passamos agora por acima de outros muitos martírios individuais para inserir o de João calas, que teve lugar em época tão recente como 1761, e que é uma indubitável prova do fanatismo do papado, mostrando que nem a experiência nem a melhoria pode desarraigar os inveterados prejuízos dos católico-romanos, nem fazê-los menos cruéis ou inexoráveis contra os protestantes.
João Calas era um mercador da cidade de Toulouse, onde tinha-se estabelecido e vivia com boa reputação, tendo-se casado com uma mulher inglesa de origem francês. Calas e sua esposa eram protestantes, e tinham cinco filhos, aos que instruíram na mesma religião; mas Luis, um deles, se converteu ao catolicismo romano, tendo sido convertido por uma criada que havia vivido com a família durante trinta anos. não obstante, o pai não expressou ressentimento algum nem má vontade por isso, senão que manteve a criada na família e assinou uma anuidade para seu filho. Em outubro de 1761 a família consistia em João Calas e sua mulher, uma criada, Marco Antônio Calas, que era o filho mais velho, e Pedro Calas, o menor. Marco Antônio tinha sido educado em lei, mas não podia ser admitido na prática por ser protestante. Por isso sofreu uma depressão, leu todos os livros que pôde conseguir acerca do suicídio, e parecia decidido a acabar com sua vida. A isto deve agregar-se que levava uma conduta dissipada, muito édito ao jogo, e que fazia tudo o que podia constituir o caráter de um libertino. Por esta razão seu pai o repreendia com freqüência, às vezes com severidade, o que acrescentou de maneira considerável a depressão que parecia oprimi-lo.
O 13 de outubro de 1761, o senhor Gober La Vaisse, um jovem cavalheiro de uns 19 anos, filho de La Vaisse, um célebre advogado de Toulouse, se reuniu por volta das cinco da tarde com João Calas, pai, e com o filho Marco Antônio, que era amigo seu. O pai Calas o convidou a jantar, e a família e seu convidado se sentaram numa estância alta; todo o grupo consistia no pai Calas e sua mulher, os dois filhos, Antônio e Pedro Calas, e o convidado La Vaisse, não havendo mais ninguém na casa exceto a criada, já mencionada.
Era então por volta das sete. O jantar não foi longo, mas antes de acabar, Antônio deixou a mesa e foi à cozinha, que estava no mesmo andar, coisa que costumava fazer. A criada lhe perguntou se tinha frio. Ele respondeu: "Bem ao contrário, estou ardendo"; depois, a deixou. Enquanto isso, seu amigo e sua família deixaram a estância na que haviam jantado e foram até uma sala de estar; o pai e La Vaisse sentaram juntos num sofá; o filho mais jovem, Pedro, numa poltrona, e a mãe em outra, e sem preocupar-se de Antônio, prosseguiram a conversação até entre as nove e as dez, quando La Vaisse se despediu, e Pedro, que tinha ficado dormido, foi acordado para acompanhá-lo com uma luz.
No andar térreo da casa dos Calas havia uma loja e um armazém, estando este separado da loja por um par de portas. Cada Pedro Calas e La Vaisse chegaram embaixo na loja, ficaram horrorizados ao ver a Antônio, vestido somente com uma camisa, enforcado numa barra que ele mesmo tinha colocado através da parte superior das duas portas, que estavam meio abertas com este propósito. Ao descobrir tão horrenda cena gritaram, o que fez descer o pai Calas, ficando a mãe tão surpreendida e presa de terror que ficou tremendo no corredor do andar superior. Quando a criada descobriu o acontecido, permaneceu lá embaixo, bem porque temesse levar a má notícia a sua ama, bem porque desejasse dedicar sua atenção a seu amo, que estava abraçando o corpo de seu filho, banhando-o com suas lágrimas. Por isso, a mãe, que tinha permanecido sozinha, desceu e achou a cena que já descrevemos, com as emoções que devia naturalmente produzi-lhe. Enquanto isso, Pedro tinha sido enviado a buscar a La Moiré, um cirurgião da vizinhança. La Moiré não estava em casa, mas seu aprendiz, o senhor Grosle acudiu de imediato. Ao examiná-lo achou o corpo já cadáver. Para este tempo tinha-se congregado uma multidão de gente papista em volta da casa e, havendo ouvido que Antônio Calas tinha morrido repentinamente, e que o médico que havia examinado seu corpo havia afirmado e tinha sido estrangulado, deram por certo que tinha sido assassinado; e como a família era protestante, chegaram a supor que o jovem estava a ponto de mudar de religião, e que tinha sido morto por esta razão.
O pobre pai, abrumado de dor pela perda do filho, foi aconselhado por seus amigos que mandar chamar os funcionários da justiça para impedir que fosse despedaçado pela multidão católica, que achava que ele tinha dado morte a seu filho. Assim fizeram, e Davi, o principal magistrado, tomou o pai, seu filho Pedro, a La Vaisse e a criada sob sua custódia, e colocou uma guarda para protegê-los. Enviou buscar o senhor de La Tour, médico, e os senhores La Marque e Peronet, cirurgiões, que examinaram o corpo buscando sinais de violência, sem achar nenhum, exceto a marca da corda no pescoço; também observaram que o cabelo de defunto estava penteado de maneira normal, perfeitamente liso e sem desordem algum; suas roupas estavam também bem dispostas, colocadas sobre o balcão, e sua camisa não estava nem desgarrada nem desabotoada.
Apesar destas evidências de inocência, o magistrado considerou apropriado concordar com a opinião da turba, e emitiu a hipótese de que o ancião Calas tinha mandado buscar a La Vaisse, dizendo que tinha um filho ao qual era preciso enforcar, que La Vaisse tinha ido para executar a função de carrasco, e que havia recebido a ajuda do pai e do irmão.
Como não podia dar-se prova alguma do suposto fato, o magistrado recorreu a uma admoestação, ou informação geral, pela que o crime era considerado verdadeiro, e se pedia publicamente que se desse testemunho em contra dele, cada um como puder fazê-lo. esta admoestação recita que La Vaisse estava encarregado pelos protestantes para ser seu carrasco ordinário, quando algum de seus filhos devesse ser enforcado por mudar de religião; afirma do mesmo modo que quando os protestantes enforcam seus filhos assim, os forçam a ajoelhar, e uma das admoestações era se alguma pessoa tinha visto a Antônio Calas ajoelhar-se diante de seu pai quando foi estrangulado; também se afirma que Antônio morreu como católico-romano, e se demanda evidência de seu catolicismo.
Porém, antes que se publicassem estas admoestações, da turba tinha saído o pensamento de que Antônio Calas iria, no dia seguinte, a ser incorporado na fraternidade dos Penitentes Brancos. Por Isaias, o magistrado ordenou que seu corpo fosse sepultado em meio da Igreja de são Estevão. Poucos dias depois do enterro do morto, os Penitentes Brancos oficiaram um solene serviço por ele em sua capela. A igreja foi cheia de pendões brancos, e em meio se levantou uma tumba, sobre a qual se colocou um esqueleto humano, aferrando numa mão um papel que dizia: "Abjuração da heresia", e na outra mão, uma palma, emblema do martírio. No dia seguinte, sem franciscanos oficiaram um serviço do mesmo tipo por ele.
O magistrado seguiu a perseguição com uma dureza implacável, e sem a menor prova, considerou oportuno sentenciar a tortura os infelizes pai, mãe, amigo e criada, e os pôs sob correntes o 18 de novembro.
Contra estes terríveis procedimentos, a sofrida família apelou ao parlamento, o qual examinou o assunto e anulou a sentença do magistrado como irregular, mas prosseguiram com a perseguição judicial, e, ao declarar o carrasco da cidade que era impossível que Antônio tivesse enforcado a si mesmo da maneira em que se pretendia, a maioria do parlamento foi da opinião de que os presos eram culpados, ordenando por isso que fossem julgados pelo tribunal criminal de Toulouse. Um os votou inocentes, porém após longos debates, a maioria estava a favor da tortura e da roda; o pai foi condenado provavelmente por via de experimento, tanto se era culpável como inocente, esperando que, em sua agonia, confessasse o crime, e acusasse os outros presos, cuja sorte ficou por isso suspensa.
Assim o coitado Calas, um ancião de sessenta e oito anos, foi condenado sozinho a este terrível castigo. Sofreu a tortura com grande valor, e foi levado a execução com uma atitude que suscitou a admiração de todos os que o viram, e em particular dos dois dominicanos (o Pai Bourges e o Pai Coldagues), que o assistiram em seus último momentos, e declararam que não só o consideravam inocente da acusação de que era objeto, senão que também era um caso exemplar de verdadeira paciência, fortaleza e caridade cristãs.
Quando viu o carrasco prestes a dar-lhe o último golpe, fez uma nova declaração ao Pai Bourges, mas ainda com as palavras na boca, o magistrado, autor desta tragédia, que tinha subido no patíbulo meramente para satisfazer seu desejo de ser testemunha de seu castigo e morte, se lançou correndo sobre ele, gritando: "Miserável! Aí estão as brasas que vão reduzir teu corpo às cinzas! Fala a verdade!". Calas não lhe respondeu, mas voltou a cabeça algo de lado. Naquele momento o carrasco executou sua função.
O clamor popular contra esta família se fez tão violento no Languedoc, que todos esperavam ver os filhos de Calas destrocados sobre a roda, e a mãe queimada viva.
O jovem Donat Calas recebeu o conselho de fugir a Suíça. Foi lá, e encontrou um cavalheiro que no princípio somente pôde compadecer-se dele e aliviá-lo, sem atrever-se a julgar o rigor exercido contra o pai, a mãe e os irmãos. Pouco depois, outro dos irmãos, que tinha sido desterrado, se acolheu à proteção da mesma pessoa, que durante mais de um mês adotou todas as precauções possíveis para assegurar-se da inocência da família. Uma vez convencido, se considerou obrigado, em consciência, a empregar seus amigos, sua própria bolsa, sua pluma, e sua reputação pessoal, para reparar o fatal erro dos sete juízes de Toulouse, e lograr que o processo fosse revisado pelo conselho do rei. Esta revisão durou três anos, e é coisa bem conhecida a honra que os senhores de Grosne e Bacquancourt alcançaram ao investigar esta memorável causa. Cinqüenta magistrados da Corte de Apelações declararam unânimes a inocência de toda a família Calas, e os recomendaram à benevolente justiça de seu rei. O duque de Choiseul, que jamais deixou passar uma oportunidade para mostrar a grandeza de seu caráter, não só ajudou à desafortunada família com dinheiro, senão que obteve do rei uma doação para eles de 36.000 libras.
O 9 de março de 1765 se firmou a sentença que justificava a família Calas e que mudava sua sorte. O 9 de março de 1762, justamente três anos atrás, tinha sido o dia da execução do inocente e virtuoso pai daquela família. Todos os parisienses se amontoaram para vê-los sair da prisão, e aplaudiram gozosos, enquanto as lágrimas brotavam de seus olhos.
Este terrível exemplo de fanatismo fez mover a pluma de Voltaire, atacando os horrores da superstição; e embora ele mesmo era incrédulo, seu ensaio sobre a tolerância honra sua pluma, e tem sido um meio de bênção para abater os rigores da perseguição na maioria dos estados europeus. A pureza do Evangelho fugirá ao igual da superstição que da crueldade, por quanto a mansidão dos ensinos de Cristo só instrui a consolar neste mundo, e a buscar a salvação no vindouro. Perseguir por diferenças de opinião é coisa absurda como perseguir por ter um rosto diferente. Se honrarmos a Deus, mantemos sagradas as puras doutrinas de contudo, colocamos plena confiança nas promessas contidas nas Sagradas Escrituras, e obedecemos às leis políticas do estado no que residimos, temos um direito inegável de proteção em vez de perseguição, e a servir o ciclo tal como nossas consciências, dirigidas pelas normas do Evangelho, nos guiem.
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