Algumas atrocidades privadas da Inquisição, reveladas por um acontecimento singular
Quando a coroa da Espanha foi disputada por dois príncipes ao começo de nosso presente século, que pretendiam igualmente a soberania, França se pôs do lado de um dos reclamantes, e a Inglaterra do lado do outro.
O duque de Berwick, filho natural de Jacob II, que tinha abdicado da coroa da Inglaterra, mandava as forças espanholas e francesas, e derrotou os ingleses na celebre batalha de Almansa. O exército foi então dividido em duas partes: uma consistente de espanhóis e franceses, que comandava o duque de Berwick se dirigiu à Catalunha, e o segundo corpo, só de tropas francesas, comandado pelo duque de Orleans, se dirigiu à conquista de Aragão.
Ao aproximar-se as tropas da cidade de Zaragoza, os magistrados saíram a oferecer as chaves ao duque de Orleans; mas este disse-lhes altivamente que eles eram uns rebeldes, e que não aceitaria as chaves, porque tinha ordem de entrar na cidade por uma brecha.
Assim, fez a brecha na muralha com seu canhão, entrando por ela com todo seu exército. Quando estabeleceu sua ordem na cidade, foi embora para submeter outras cidades, deixando ali uma forte guarnição tanto para atemorizá-la como para defendê-la, sob o mando de seu tenente geral M. de Legal. Este cavalheiro, embora criado como católico-romano, estava totalmente livre de superstições; unia uns grandes talentos a seu grande valor, e era um oficial muito capaz, além de um cumprido gentleman.
Este duque, antes de partir, tinha ordenado que se impusessem pesadas contribuições à cidade, da seguinte maneira:
1. Que os magistrados e principais habitantes pagassem mil coroas por mês para a mesa do duque.
2. Que cada casa pagara uma pistola, o que daria uma suma de 18.000 pistolas mensais.
3. Que cada convento e mosteiro pagasse uma contribuição proporcional a suas riquezas e rendas.
4. Estas últimas duas contribuições seriam apropriadas para o mantimento do exército.
O dinheiro imposto aos magistrados e principais habitantes, e a cada casa, foi pago de imediato; mas quando os arrecadadores acudiram aos diretores dos conventos e dos mosteiros, acharam que os clérigos não estavam dispostos como os outros a dar seu dinheiro.
Estas eram as contribuições que devia aportar o clero:
O Colégio de Jesuítas devia pagar 2000 pistolas
Os Carmelitas: 1000
Os Agostinianos: 1000
Os Dominicanos: 1000
M. de Legal enviou aos Jesuítas uma ordem peremptória para que pagassem o dinheiro imediatamente. O superior dos Jesuítas deu por resposta que a petição de que o clero pagasse ao exército ia contra todas as imunidades eclesiásticas, e que não conhecia nenhum argumento que pudesse autorizar semelhante coisa. M. de Legal enviou então uma companhia de dragões que se aquartelaram no colégio, com esta sarcástica mensagem: "Para convencê-lo da necessidade de pagar o dinheiro, envio quatro argumentos poderosos a seu colégio, tirados do sistema da lógica militar; assim, espero que não me será preciso nenhuma admoestação adicional para dirigir sua conduta".
Estes procedimentos deixaram muito perplexos aos Jesuítas, os quais enviaram um correio à corte, ao confessor do rei, que era de sua ordem; mas os dragões se deram muita mais pressa em saquear e destruir que o correio em sua viagem, de modo que os Jesuítas, vendo que todo estava sendo destruído e arruinado, consideraram melhor ajeitar a questão de forma amistosa, e pagar o dinheiro antes do regresso do mensageiro. Os Agostinianos e Carmelitas, advertidos pelo sucedido aos Jesuítas, foram prudentes e pagaram, e deste modo escaparam à necessidade de realizar um estudo dos argumentos militares, e de receber um ensino de lógica por parte dos dragões.
Porém os Dominicanos, que eram todos familiares ou agentes dependentes da Inquisição, imaginaram que aquelas mesmas circunstâncias serviriam para protegê-los. Mas estavam errados, porque M. de Legal nem temia nem respeitava a Inquisição. O diretor dos Dominicanos lhe enviou uma mensagem dizendo-lhe que sua ordem era pobre, e que não tinham dinheiro algum com o qual pagar as contribuições. Dizia assim: "Toda a riqueza dos Dominicanos consiste só nas imagens de prata dos apóstolos e santos, de tamanho natural, que estão na igreja, e que seria sacrilégio retirar".
Esta insinuação tinha por objeto aterrar o comandante francês que, pensavam os inquisidores, não ousariam ser tão profanos como para desejar a possessão dos ricos ídolos.
Contudo, ele enviou aviso de que as imagens de prata seriam um admirável substituto do dinheiro, e que seriam mais úteis em sua possessão que em possessão dos Dominicanos. "Por' (dizia ele), enquanto os tendes da forma em que os tendes agora, estão em nichos, inúteis e imóveis, sem ser de proveito algum para a humanidade em geral, ou seque para vós outros; porém, quando estiverem em minhas mãos, serão úteis; os porei em movimento, porque tenho a intenção de acunhá-los, para que viagem como os apóstolos, sejam de benefício em lugares variados, e circulem para serviço universal da humanidade".
Os inquisidores ficaram atônitos ante este tratamento, que nunca esperavam receber, nem sequer de cabeças coroadas; por isso, decidiram entregar suas preciosas imagens em solene procissão, para levantar o povo numa insurreição. Assim, os frades receberam ordem de dirigir-se à casa de Legal com os apóstolos e santos de prata com vozes de lamentações, com círios acesos em suas mãos, e clamando amargamente por todo o caminho, dizendo: "Heresia, heresia!".
M. de Legal, ao saber de este modo de agir, ordenou que quatro companhias de granadeiros se alinhassem pela rua que conduzia a sua casa; ordenou a cada granadeiro que tivesse seu mosquete carregado numa mão e um círio aceso na outra, de modo que as tropas pudessem tanto repelir a força com a força, ou render as honras à farsa.
Os frades fizeram tudo o possível para suscitar um tumulto, mas o comum do povo tinha demasiado medo às tropas armadas para obedecê-lhes. Por isso, as imagens de prata foram entregues a M. de Legal, quem as enviou à Casa da Moeda, para serem acunhadas de imediato.
Tendo fracassado a tentativa de levantar uma insurreição, os inquisidores decidiram excomungar a M. de Legal, a não ser que liberasse de seu encarceramento na casa da moeda os preciosos santos de prata antes que fossem fundidos ou mutilados de qualquer outra forma. O comandante francês recusou de vez a liberar as imagens, dizendo que iriam logo viajar e realizar o bem; ante isto, os inquisidores redigiram um documento de excomunhão, ordenando ao secretário que fosse a lê-lo a M. de Legal.
O secretário executou fielmente seu encargo, e leu a excomunhão de maneira clara e compreensível. O comandante francês a escutou com grande paciência, e cortesmente disse ao secretário que daria sua resposta no dia seguinte.
Quando o secretário da Inquisição houve ido embora, M. de Legal ordenou a seu secretário que preparasse um documento de excomunhão exatamente igual ao enviado pela Inquisição, mas fazendo esta alteração: em lugar de seu nome, que colocasse os dos inquisidores.
Na manhã seguinte ordenou a quatro regimentos que se armassem, e ordenou que acompanhassem a seu secretário, e que agissem como ele ordenasse.
O secretário foi até a Inquisição, e insistiu em ser admitido, o qual, depois de muitas discussões, foi-lhe concedido. Tão pronto como entrou, leu, em voz audível, a excomunhão enviada por M. de Legal contra os inquisidores. Os inquisidores estavam todos presentes, e a ouviram atônitos; nunca antes tinham achado um indivíduo que ousara agir de forma tão atrevida. Clamaram a gritos contra M. de Legal como herege, e disseram: "Este é um insulto demasiado ousado contra a fé católica". Mas, para maior surpresa, o secretário francês respondeu que deveriam saírem de sua atual morada;pois o comandante francês queria aquartelar suas tropas na Inquisição, sendo que era o lugar mais cômodo de toda a cidade.
Os inquisidores clamaram a gritos por isto, e o secretário os colocou então sob uma forte custodia, e os enviou ao lugar que M. de Legar havia preparado para eles. Os inquisidores, ao verem como marchavam as coisas, rogaram que lhes fosse permitido tomar suas possessões pessoais, o que lhes foi concedido; se dirigiram então a Madri, onde se queixaram amargamente ante o rei. Mas o monarca lhes disse que ele não podia dar-lhes satisfação alguma, porque as injúrias que tinham recebido eram das tropas de seu avô, o rei da França. E era somente pela ajuda delas que ele podia ficar firmemente estabelecido em seu reino. "Si tiverem sido minhas próprias tropa, as teria castigado, porém, sendo as coisas como são, não posso pretender exercer autoridade alguma".
Enquanto isso, o secretário de M. de Legal tinha aberto todas as portas da Inquisição, e liberado os presos, que eram por volta de quatrocentos, e entre este havia setenta formosas jovens, que resultaram ser um harém dos três principais inquisidores.
Este descobrimento, que deixou exposta tão abertamente a perversidade dos inquisidores, alarmou muito o arcebispo, que pediu a M. de Legal que enviasse as mulheres a seu palácio, onde ele cuidaria apropriadamente delas; ao mesmo tempo publicou uma censura eclesiástica em contra de todos os que ridicularizaram ou censuraram o santo ofício da Inquisição.
O comandante francês enviou recado ao arcebispo dizendo-lhe que os presos tinham fugido, ou que estavam tão firmemente escondidos por seus amigos ou inclusive por seus próprios oficiais, que lhe era impossível recuperá-los; e que tendo a Inquisição cometido tais atrocidades, agora deveria suportar sua exibição pública.
Alguns podem sugerir que é coisa estranha que as cabeças coroadas e que os eminentes nobres não tentassem esmagar o poder da Inquisição, e reduzir a autoridade daqueles tiranos eclesiásticos, de cujas fauces implacáveis não estavam seguros nem suas famílias nem eles mesmos.
Mas, por assombroso que seja, a superstição tinha sempre prevalecido neste caso contra o sentido comum, e o costume tinha operado contra a razão. Naturalmente, houve um príncipe que tratou de reduzir a autoridade da Inquisição, mas perdeu sua vida antes de ser rei, e portanto antes de ter poder para fazê-lo, porque a simples sugestão de sua intenção serviu para sua destruição.
Este era o muito gentil príncipe don Carlos, filho de Felipe II, rei da Espanha, e neto do célebre imperador Carlos V. don Carlos possuía todas as boas qualidades de seu avô, sem nenhuma das más de seu pai, e era um príncipe de grande vivacidade, grande erudição e do caráter mais gentil. Tinha o suficiente sentido comum para poder ver os erros do papado, e aborrecia o nome mesmo da Inquisição. Se manifestou em público em contra desta instituição, ridicularizava a afetada piedade dos inquisidores, fez o que pôde por denunciar suas atrozes ações, e inclusive declarou que se alguma vez acedia à coroa, aboliria a Inquisição e exterminaria seus agentes.
Isto foi suficiente para irritar os inquisidores contra o príncipe; dedicaram suas mentes a idear uma vingança, e decidiram destruí-lo.
Os inquisidores empregaram agora todos seus agentes e emissários para espargir as mais arteiras insinuações contra o príncipe, e no final suscitaram tal espírito de descontento entre o povo que o rei se viu obrigado a enviar a Don Carlos fora da corte. Não contentes com isto, perseguiram inclusive os amigos, e obrigaram também ao rei a desterrar a Don Juan, duque da Áustria, seu próprio irmão, e portanto tio do príncipe; junto com o príncipe de Parma, sobrinho do rei e primo do príncipe, porque sabiam bem que tanto o duque de Áustria como o príncipe de Parma sentiam uma adesão sincera e inviolável para Don Carlos.
Poucos anos depois, ao ter mostrado o príncipe uma grande suavidade e favor para com os protestantes nos Países Baixos, a Inquisição protestou estrondosamente contra ele, declarando que, já que aquelas pessoas eram hereges, o príncipe necessariamente devia de ser um deles, porque os favorecia. Em resumo, alcançaram tanta influência sobre a mente do rei, tão totalmente escravizado sob a superstição que, por assombroso que pareça sacrificou os sentimentos da natureza ao fanatismo e, por medo de incorrer na ira da Inquisição, entregou seu único filho, assinando ele mesmo sua sentença de morte.
O príncipe, naturalmente, teve o que se chamava de uma indulgência; isto é, foi-lhe permitido escolher ele mesmo que morte desejava padecer. Ao modo romano, o desafortunado jovem herói escolheu o sangramento e banho quente. Quando lhe foram abertas as veias dos braços e das pernas, expirou gradativamente, caindo mártir da malícia dos inquisidores, e do estúpido fanatismo de seu pai.
A perseguição do doutor Egídio
O doutor Egídio tinha sido educado na universidade de Alcalá, onde recebeu vários títulos, e se aplicou de forma particular ao estudo das Sagradas Escrituras, e da teologia escolástica. Quando morreu o professor de teologia, ele foi escolhido para assumir seu lugar, e agiu para tal satisfação de todos que sua reputação de erudição e piedade se estendeu por toda Europa.
Egídio, contudo, tinha seus inimigos, e estes se queixaram dele ante a Inquisição, e assim lê enviaram uma citação e, quando compareceu, o lançaram no calabouço.
Como a maioria dos que pertenciam à igreja catedral de Sevilha, e muitas pessoas que pertenciam ao bispado de Dortois, aprovavam totalmente as doutrinas de Egídio, que consideravam perfeitamente coerentes com a verdadeira religião, fizeram uma petição ao imperador em seu favor. Embora o monarca tinha sido educado como católico-romano, tinha demasiado sentido comum para ser um fanático, e por isso enviou de imediato uma ordem para que fosse liberado.
Pouco depois visitou a igreja de Valladolid, e fez tudo a seu alcance para promover a causa da religião. Voltando a sua casa, pouco depois adoeceu e morreu na mais extrema velhice.
Tendo-se visto frustrados os inquisidores em satisfazer sua malícia contra ele enquanto vivia, decidiram (enquanto todos os pensamentos do imperador estavam dirigidos a uma campanha militar) lançar sua vingança contra ele já morto. Assim, pouco tempo depois de sua morte ordenaram que seus restos fossem exumados, e se empreendeu um processo legal, no qual foram condenados a serem queimados, o qual foi executado.
A perseguição do doutor Constantino
O doutor Constantino era um amigo íntimo do já mencionado doutor Egídio, e era um homem de capacidades naturais fora do comum e de profunda erudição. Além de conhecer várias línguas modernas, estava familiarizado com as línguas latina, grega e hebraica, e não só conhecia bem as ciências chamadas abstratas, senão também as artes que se denominam como literatura amena.
Sua eloqüência o fazia prazeroso, e a retidão de sua doutrina o fazia um predicador proveitoso; e era tão popular que nunca predicava sem multidões a ouvi-lo. Teve muitas oportunidades para escalar na Igreja, mas nunca quis aproveitá-las. Se lhe eram oferecidas rendas maiores da que tinha, recusava, dizendo: "Estou satisfeito com o que tenho", e com freqüência predicava tão duramente contra a simonia [1] que muitos de seus superiores, que não eram tão estritos acerca desta questão, estavam em contra de suas doutrinas por esta questão.
Tendo ficado plenamente confirmado no protestantismo pelo doutor Egídio, predicava abertamente só aquelas doutrinas que se conformavam à pureza do Evangelho, sem as contaminações dos erros que em várias eras se infiltraram na Igreja Romana. Por esta razão tinha muitos inimigos entre os católico-romanos, e alguns deles estavam totalmente dedicados a destruí-lo.
Um digno cavalheiro chamado Scobaria, que tinha fundado uma escola para aulas de teologia, designou ao doutor Constantino para que fosse professor nela. De imediato empreendeu a tarefa, e leu conferencias, por seções, acerca de Provérbios, Eclesiastes e do Cântico dos Cânticos; começava a expor o livro de Jó quando foi apreendido pelos inquisidores.
O doutor Constantino tinha depositado vários livros com uma mulher chamada Isabel Martin, livros muito valiosos para ele, mas que sabia que para a Inquisição eram perniciosos.
Esta mulher, denunciada como protestante, foi apreendida e, depois de um breve processo, se ordenou a confiscação de seus bens. Mas antes que os oficiais chegassem em sua casa, o filho da mulher tinha feito tirar vários baús cheios dos artigos mais valiosos, e entre eles estavam os livros do doutor Constantino.
Um criado traidor deu a conhecer isto aos inquisidores, e enviaram um oficial para exigir os baús. O filho, achando que o oficial somente queria os livros de Constantino, disse: "Sei o que procura, e vou entregá-lo de imediato". Então lhe deu os livros e papeis do doutor Constantino, ficando o oficial muito surpreendido ao encontrar algo que não se esperava. Contudo, disse ao jovem que estava feliz de que lhe entregasse esses livros e papeis, mas que tinha, não obstante, que cumprir a missão que tinham-lhe encomendado, que era levá-lo a ele e os bens que tinha roubado dos inquisidores, o que fez de imediato; o jovem bem sabia que seria em vão protestar ou resistir-se, e por isso se submeteu a sua sorte.
Os inquisidores, em possessão dos livros e escritos de Constantino, tinham agora material suficiente para apresentar cargos em sua contra. Quando foi chamado a um interrogatório, lhe apresentaram um de seus papeis, perguntando-lhe se conhecia de quem era a escritura. percebendo que era tudo seu, supus o acontecido, confessou o escrito, e justificou a doutrina nele contida, dizendo: nisto ou em nenhum outro de meus escritos tenho-me afastado jamais da verdade do Evangelho, senão que sempre levei em conta os puros preceitos de Cristo, tal como Ele os entregou à humanidade.
Depois de uma estância de mais de dois anos no cárcere, o doutor Constantino foi vítima de uma doença que lhe provocou uma hemorragia, pondo fim a suas misérias neste mundo. Mas o processo foi concluído contra seu corpo, que foi queimado publicamente no seguinte auto de fé.
[1] Simonia (de Simão o Mágico, personagem do Novo Testamento): compra ou venda de coisas espirituais, ou de coisas temporais, inseparavelmente unidas às espirituais (Enciclopédia Encarta de Microsoft) (N. da T.).
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