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domingo, 7 de agosto de 2011

Livro dos Mártires - Parte 14

A vida de William Gardiner
Qilliam Gardiner nasceu em Bristol, recebeu uma educação tolerável, e foi, numa idade apropriada, colocado sob os cuidados de um mercador chamado Paget.
Na idade de vinte e seis anos foi enviado, por seu amo, a Lisboa, para operar como feitor. Aqui se aplicou ao estudo do português, exerceu sua atividade com eficácia e diligência, e se comportou com a mais atraente amabilidade com todas as pessoas, por pouco que as conhecesse. Mantinha maio relação com uns poucos que conhecia como zelosos protestantes, evitando ao mesmo tempo com grande cuidado dar a mais mínima ofensa aos católico-romanos. Contudo, nunca havia assistido a nenhuma das igrejas papistas.
Tendo-se concertado o matrimônio entre o filho do rei de Portugal e a Infanta de Espanha, no dia do casamento o noivo, a noiva e toda a corte assistiram à igreja catedral, concorrida por multidões de todo nível, e entre o resto William Gardiner, que esteve presente durante a cerimônia, e ficou profundamente abalado pelas superstições que contemplou.
O errôneo culto que tinha assistido se mantinha constante em sua mente; se sentia infeliz ao ver todo um país afundado em tal idolatria, quando se poderia ter facilmente a verdade do Evangelho. Por isso, tomou a decisão, louvável, porém desconsiderada, de executar uma reforma no Portugal, ou morrer na tentativa, e decidiu sacrificar sua prudência a seu zelo, ainda que chegasse a ser mártir por isso.
Para este fim concluiu todos seus assuntos mundanos, pagou todas suas dívidas, fechou seus livros e consignou sua mercadoria. No domingo seguinte se dirigiu de novo à igreja catedral, com um Novo Testamento em sua mão, e se dispus perto do altar.
Pronto apareceram o rei e a corte, e um cardeal começou a dizer Missa; naquela parte da cerimônia na que o povo adora a hóstia, Gardiner não pôde conter-se, mas pulando sobre o cardeal, pegou a hóstia de suas mãos e a pisoteou.
Esta ação deixou atônita a toda a congregação, e uma pessoa, empunhando uma adaga, feriu a Gardiner no ombro e o teria matado, assestando-lhe outra punhalada, se o rei não o tivesse feito desistir.
Levado Gardiner perante o rei, este lhe perguntou quem era, ao qual respondeu: "Sou inglês de nascimento, protestante de religião, e mercador de profissão. O que fiz não é por menosprezo a vossa régia pessoa; Deus não queira, senão por uma honrada indignação ao ver as ridículas superstições e torpes idolatrias que aqui se praticam".
O rei, achando que teria sido induzido a este ato por alguma outra pessoa, lhe perguntou quem o havia levado a fazer aquilo, ao que ele replicou: "Só a minha consciência. Não teria arriscado a minha vida deste modo por nenhum homem vivo, senão que devo este e todos meus outros serviços a Deus".
Gardiner foi mandado à prisão, e se emitiu uma ordem para apreender todos os ingleses em Lisboa. Esta ordem foi cumprida em grande medida (uns poucos escaparam), e muitas pessoas inocentes foram torturadas para fazê-las confessar se sabiam algo acerca do assunto. De forma particular, um homem que vivia na mesma casa que Gardiner foi tratado com uma brutalidade sem paralelo para fazê-lo confessar algo que lançasse algo de luz sobre esta questão.
O próprio Gardiner foi depois torturado da forma mais terrível, mas em meio de seus tormentos se gloriava em sua ação. Sentenciado a morte, se acendeu uma grande fogueira perto de um patíbulo. Gardiner foi subido ao patíbulo mediante polias, e logo descido perto do fogo, mas sem chegar a tocá-lo; deste modo o queimara ou, melhor falando, o assaram a fogo lento. Mas suportou seus sofrimentos pacientemente, e entregou animadamente sua alma ao Senhor.
Devemos observar aqui que algumas das faíscam que foram arrastadas do fogo que consumiu a Gardiner por meio do vento, queimaram um dos barcos de guerra do rei, e causaram consideráveis danos. Os ingleses que foram detidos nesta ocasião foram todos libertados pouco depois da morte de Gardiner, exceto o homem que morava na mesma casa que ele, quem ficou detido por dois anos antes de lograr sua liberdade.

Relato da vida e sofrimentos do senhor William Lithgow, natural da Escócia
Este cavalheiro descia de boa família e, tendo inclinação para as viagens, visitou, muito jovem, as ilhas do norte e do ocidente. Depois disto visitou a França, Alemanha, Suíça e a Espanha. Empreendeu suas viagens no mês de março de 1609, e o primeiro lugar aonde se dirigiu foi Paris, onde permaneceu por certo tempo. Depois prosseguiu suas viagens por Alemanha e outros lugares, até chegar finalmente a Málaga, na Espanha, o lugar de todas suas desgraças.
Durante sua estância ali, contratou com o dono de um barco uma passagem para Alexandria, porém se viu impedido de partir pelas seguintes circunstâncias: ao final da tarde do dezessete de outubro de 1620, a frota inglesa, que naqueles tempos estava em luta contra os piratas argelinos, foi ancorar frente à Málaga. Isto provocou a consternação da gente da cidade, que imaginaram serem os turcos. Mas pela manhã se descobriu o erro, e o governador de Málaga, percebendo a cruz da Inglaterra em suas bandeiras, foi a bordo da nave de Sir Robert Mansel, o comandante daquela expedição, e depois de permanecer certo tempo a bordo voltou a terra, e acalmou os temores das pessoas.
No dia seguinte, muitas pessoas da frota desceram a terra. Entre eles havia vários bons conhecidos do senhor Lithgow, que, depois de recíprocas saudações, passaram alguns dias em festejos e diversões na cidade. Depois convidaram o senhor Lithgow a subir a bordo e apresentar seus respeitos ao almirante. Aceitou ele o convite, foi amavelmente recebido por ele, e ficou até o dia seguinte, quando a frota partia. O almirante teria levado consigo de boa vontade o senhor Lithgow até o Argel, mas ao saber que ele tinha já contratado sua passagem para Alexandria, e tendo sua equipagem na cidade, não pôde aceitar o oferecimento.
Assim que o senhor Lithgow desceu a terra, dirigiu-se a seu alojamento por um caminho privado (naquela mesma noite iria embarcar rumo a Alexandria) quando, ao passar por uma estreita rua desabitada, encontrou-se de repente rodeado por nove oficiais, que lhe lançaram acima um manto preto, e o conduziram pela força à casa do governador. Depois de pouco tempo apareceu o governador, e o senhor Lithgow lhe rogou intensamente que o informasse da causa de um tratamento tão violento. O governador só respondeu com uma sacudida de cabeça, e deu ordem de vigiar estreitamente o prisioneiro até que ele voltasse de suas devoções. Ao mesmo tempo, deu ordem de que o capitão da cidade, o alcaide maior e o notário da cidade comparecessem ao interrogatório, e que tudo isto tiver lugar no maior dos segredos, para impedir que tivessem conhecimento disso os mercadores ingleses que então residiam na cidade.
Estas ordens foram estritamente cumpridas, e ao voltar o governador, sentou-se com os funcionários e o senhor Lithgow foi trazido para o interrogatório. O governador começou fazendo várias perguntas, como de que país procedia, aonde se dirigia e quanto tempo tinha estado na Espanha. O preso, depois de responder a estas e outras perguntas, foi levado a um quarto onde, depois de pouco tempo, foi visitado pelo capitão da cidade, quem lhe perguntou se tinha estado alguma vez em Sevilha, ou se havia chegado de lá fazia pouco tempo; e dando-lhe uma palmada na face com ar de amizade, o conjurou a dizer a verdade, "porque (disse) tua mesma cara revela que há algo escondido em tua mente, e a prudência deveria levar-te a revelá-lo". Não obstante, vendo que não conseguir obter nada do preso, o deixou, e informou disso ao governador e os outros funcionários. A isto o senhor Lithgow foi trazido diante deles, e apresentaram uma acusação geral contra eles, e foi obrigado a jurar que daria respostas verazes às perguntas que lhe fizeram.
O governador passou a indagar acerca do comandante inglês, e a opinião do preso acerca de quais eram os motivos que o impediram de aceitar um convite seu de acudir a terra. Pediu, também, os nomes dos capitães ingleses na frota, e que conhecimento tinha ele do embarque ou preparação para o mesmo, antes de sua partida da Inglaterra. As respostas dadas às várias perguntas foram registradas por escrito diante do notário; mas aqueles conspiradores pareciam surpreendidos ante a negativa de saber nada acerca da preparação da frota, em particular o governador, quem disse que mentia; que era um traidor e espião, e tinha vindo diretamente da Inglaterra para favorecer e ajudar os desígnios projetados contra a Espanha, e que para isso tinha passado nove meses em Sevilha, a fim de conseguir informação acerca do tempo da chegada da frota espanhola procedente das Índias. Protestaram acerca de sua familiaridade com os oficiais da frota, e com muitos dos outros cavalheiros ingleses, sendo que tinham existido entre eles muitas cortesias fora do usual, mas que tudo isto tinha sido cuidadosamente vigiado.
Além de sumariá-lo tudo, e para deixar as coisas além da dúvida, disseram que vinha de um conselho de guerra, celebrado naquela manhã a bordo do navio almirante, a fim de executar as ordens que lhe haviam encomendado. O inculparam de ser cúmplice na queima da ilha de santo Tomás, nas Antilhas. "Por isto (disseram), a estes luteranos e filhos do diabo não se devia dar crédito algum do que dizem ou juram".
Em vão tentou o senhor Lithgow defender-se das acusações que lhe faziam, e fazer com que os juízes acreditassem nele, tão cheio de prejuízos estavam. Pediu permissão para que lhe enviassem sua bolsa, que continha seus papeis, e que poderia demonstrar sua inocência. A esta petição acederam, achando que poderiam descobrir algumas coisas que desconheciam. Trouxeram, pois, a bolsa e, abrindo-a, acharam uma licencia do rei Tiago I, com sua assinatura, estabelecendo a intenção do portador de viajar ao Egito; isto o trataram os altaneiros espanhóis com grande menosprezo. Os outros papéis consistiam em passaportes, testemunhos, etc., de pessoas de categoria. Mas todas estas credenciais só pareceram confirmar, em lugar de diminuir, as suspeitas destes juízes cheios de prejuízos, que, depois de fazer-se com todos os papéis do prisioneiro, lhe ordenaram que se retirasse novamente.
Nesse entretempo mantiveram consultas para decidir onde devia ser encerrado o preso. O alcaide, o juiz principal, estava a favor de encerrá-lo no cárcere da cidade; mas a isto objetaram, em especial o corregedor, que disse, em espanhol: "A fim de impedir que seus compatriotas saibam de seu encerro, tomarei isto em minhas mãos, e ficarei responsável pelas conseqüências"; a isto se acordou que fosse encarcerado na casa do governador com o maior sigilo.
Decidido isto, um dos oficiais foi ao senhor Lithgow, pedindo-lhe que lhe entregasse seu dinheiro, e que se deixasse registrar. Como era inútil resistir, o preso deveu aceder; depois o oficial (após tirar de seus bolsos onze ducados) o deixou em camisa; e procurando em suas calcas, achou, dentro do cinto, duas sacolas de tecido, que continham cinto e trinta e sete peças de ouro. O oficial levou de imediato este dinheiro ao corregedor quem, depois de tê-lo contado, ordenou que o prisioneiro fosse vestido e encerrado até depois do jantar.
Por volta da meia-noite, o oficial e dois escravos turcos tiraram o senhor Lithgow de seu encerro, mas só para introduzi-lo em outro muito mais temível. O levaram através de vários corredores até uma estância na parte mais remota do palácio, até o jardim, onde o acorrentaram, e estenderam suas pernas por meio de uma barra de ferro de aproximadamente uns noventa centímetros de comprimento, cujo peso era tal que não podia ficar em pé nem sentar-se, senão que estava obrigado a ficar continuamente de costas. O deixaram nesta condição durante um certo tempo, voltando depois com um refrigério que consistia em aproximadamente meio quilograma de cordeiro fervido e pão, junto com uma pequena quantidade de vinho, o qual não só foi o primeiro, senão o melhor e último deste tipo durante sua prisão neste lugar. Depois de dar-lhe estes alimentos, o oficial fechou a porta, e deixou o senhor Lithgow sumido em suas próprias meditações.
No dia seguinte recebeu uma visita do governador, quem lhe prometeu sua liberdade, com muitas outras vantagens, se confessar-se espia; mas ao protestar ele de sua total inocência, o governador saiu enfurecido, dizendo que "Não o veria mais até que adicionais tormentos o levassem a confessar", e ordenando o guarda para não permitir que ninguém tivesse acesso a ele nem comunicação alguma; que seu sustento não excedesse as oitenta gramas de pão bolorento e meio litro de água a cada dois dias; que não lhe for permitida nem cama, nem travesseiro, nem cobertor. "Fechai esta fenda em sua estância com cal e pedra, obturai as brechas da porta com duplos tapetes; que não tenha nada que lhe dê a mais mínima comodidade". Estas e outras ordens de parecida dureza foram dadas para fazer que fosse impossível que ninguém da nação inglesa soubesse de sua condição.
Neste miserável e deprimente estado permaneceu vários dias o coitado Lithgow, sem ver ninguém, até que o governador recebeu resposta de Madri a uma carta que tinha escrito acerca do preso; e, seguindo as instruções recebidas, pus em prática as crueldades tramadas, que foram aceleradas, porque se aproximavam os dias santos do Natal, sendo já o dia quadragésimo sétimo desde seu encarceramento.
Por volta das duas da madrugada, ouviu barulho de uma carruagem na rua, e alguém que abria as portas de sua prisão, onde não tinha podido dormir durante duas noites; a fome, a dor e os deprimentes pensamentos tinham-lhe impedido repouso algum.
Pouco depois de abertas as portas da prisão, os nove oficiais que o haviam detido a primeira vez entraram no lugar onde jazia e, sem dizer palavra, o levaram com suas correntes através da casa e da rua, onde o esperava uma carruagem, no qual o depositaram tendido de costas, por não poder sentar-se. Dois dos oficiais foram com ele, e o resto foi andando junto da carruagem, mas todos observaram o mais profundo silêncio. Foram até o edifício com um lagar, a um quilômetro e meio da cidade, aproximadamente, onde o tinham levado em segredo, antes, a um potro de tortura; ali o encerraram aquela noite.
No dia seguinte, ao amanhecer, chegaram o governador e o alcaide, em cuja presença o senhor Lithgow teve de sofrer um outro interrogatório. O preso pediu um intérprete, o que lhe era permitido aos estrangeiros, segundo a lei do país, mas foi-lhe recusado, e não lhe permitiram apelar a Madri, à corte suprema de justiça. Depois de um longo interrogatório, que durou desde a manhã até a noite, apareceu em todas as respostas uma conformidade tão estreita com o que já tinha falado antes, que disseram que havia aprendido as respostas de cor, não cometendo a mais mínima contradição. Não obstante, o pressionaram mais uma vez a fazer uma longa confissão; isto é, a se acusar a si mesmo de crimes que jamais tinha cometido, e o governador agregou: "Continua você estando em meu poder; posso dá-lhe a liberdade se colaborar; caso contrário, deverei entregá-lo ao alcaide". Ao persistir o senhor Lithgow em sua inocência, o governador ordenou ao notário que redigisse uma ordem para entregá-lo ao alcaide a fim de ser torturado.
Como conseqüência disto, foi levado pelos oficiais até o final de uma galeria de pedra, onde estava o potro de tortura. O algoz tirou-lhe de imediato os ferros, o que provocou profundas dores, tendo sido colocados os pregos tão perto da carne que o martelo desgarrou uns dez centímetros de seu talão ao romper o prego; esta dor, junto com sua debilidade (não tinha comido nada em três dias) o fez gemer amargamente, ao que o implacável alcaide disse: "Vilão, traidor, isto é só uma amostra do que vás sofrer!".
Quando tiraram os ferros, caiu sobre seus joelhos, pronunciando uma curta oração, pedindo a Deus que o ajudasse a ficar firme, e a sofrer com valor a terrível prova com que iria encontrar-se. Sentados o alcaide e o notário em cadeiras, ele foi completamente despido e colocado no potro do tormento, sendo o ofício destes cavalheiros serem testemunhas das torturas sofridas pelo delinqüente, e pôr por escrito suas confissões.
É impossível descrever as várias torturas que lhe aplicaram. Será suficiente com dizer que esteve tendido no potro durante cinco horas, durante as quais recebeu por volta de sessenta torturas da mais infernal natureza; e que se tiverem continuado por mais alguns minutos, teria morrido inevitavelmente.
Satisfeitos por enquanto estes cruéis perseguidores, o preso foi tirado do potro e, depois de colocá-lhe novamente os ferros, o conduziram a sua anterior masmorra, sem receber outro alimento que um pouco de vinho quente, que foi-lhe dado antes para impedir que morresse, e para preservá-lo para futuros tormentos, que por nenhum princípio de caridade ou de compaixão.
Como confirmação disto, se deram ordens para que uma carruagem passasse a cada manhã, antes de sair o dia, junto da prisão, para que o barulho suscitasse renovados temores e alarmes ao infeliz cativo, e que o privaram de toda possibilidade de obter o mais mínimo repouso.
Seguiu nesta horrenda situação, quase morrendo por falta dos necessários alimentos para conservar sua mísera existência, até o dia de Natal, em que recebeu um pouco de alívio da mão de Mariana, a dama de companhia da esposa do governador, quem lhe levou um refrigério consistente em mel, açúcar, passas de uvas e outros artigos; e tão afetada ficou ante sua situação que chorou amargamente, e ao sair expressou a maior preocupação ao não poder resultar de maior ajuda.
Nesta abominável prisão ficou o coitado senhor Lithgow até ser quase devorado pelos insetos. Passavam sobre sua barba, seus lábios, suas sobrancelhas, etc., de modo que apenas podia abrir os olhos; e este tormento era aumentado ao não poder usar suas mãos e pés para defender-se deles, ao estar tão horrivelmente aleijado pelas torturas sofridas. Tal era a crueldade do governador que inclusive ordenou que lançassem mais desses animais sobre ele duas vezes a cada semana. Contudo, obteve alguma mitigação desta parte do castigo graças à humanidade de um escravo turco que o assistia e que, quando podia fazê-lo sem perigo, destruía os bichos e ajudava em tudo que podia para oferecer algum refrigério àqueles que estava em seu poder.
Por este escravo recebeu o senhor Lithgow informação que lhe deu bem pouca esperança de ser alguma vez liberado, senão que, ao contrário, iria acabar sua vida sob novas torturas. A essência desta informação era que um sacerdote de um seminário inglês e um fabricante de tonéis escocês tinham sido empregados por algum tempo pelo governador para traduzir todos seus livros e observações do inglês à língua espanhola; e que se dizia abertamente dele na casa do governador que era um super-herege.
Esta informação o alarmou sumamente, e começou, não sem razão, a temer que pronto acabariam com ele, e tanto mais quanto que não haviam conseguido, nem com a tortura nem com outros médios, fazer com que ele variasse nem um pouco em tudo quanto tinha falado durante seus diversos interrogatórios.
Dois dias depois de ter recebido esta informação, o governador, um inquisidor e um sacerdote canônico, acompanhados por dois jesuítas, entraram em sua masmorra e, uma vez sentados, e depois de várias perguntas sem substância, o inquisidor perguntou ao senhor Lithgow se era católico-romano, e se reconhecia a supremacia do Papa. Ele respondeu que nem era o primeiro nem admitia o segundo, agregando que o surpreendiam semelhantes perguntas, por quanto estava estipulado de maneira expressa nos artigos de paz entre a Inglaterra e a Espanha que nenhum dos súbditos ingleses estava sujeito à Inquisição, e que não poderiam ser de modo algum incomodados devido a diferenças de religião, etc. na amargura de sua alma fez uso de algumas expressões ardorosas não apropriadas para suas circunstâncias: "Da mesma maneira que quase me tendes assassinado por pretendida traição, assim agora quereis fazer-me mártir por minha religião". Também acusou o governador de agir de ma fé contra o rei da Inglaterra (cujo súbdito era ele), esquecendo a régia humanidade exercida para com os espanhóis em 1588, quando sua armada tinha naufragado frente à costa escocesa, e milhares de espanhóis acharam socorro, quando de outro modo teriam perecido miseravelmente.
O governador admitiu a verdade do falado pelo senhor Lithgow, mas respondeu altivamente que o rei, que então só reinava sobre a Escócia, foi motivado mais por temor que por amor, e que por isso não merecia gratidão alguma. Um dos jesuítas disse que não se devia guardar fé alguma aos hereges. Depois o inquisidor, levantando-se, se dirigiu ao senhor Lithgow com estas palavras: "Você foi apreendido como espia, acusado de traição, e torturado, como reconhecemos, sendo inocente (isto, ao que parece, referindo-se à informação posterior recebida em Madri acerca das intenções dos ingleses), mas tem sido o poder divino quem trouxe estes juízos sobre você, por agir presunçosamente contra o bendito milagre de Loreto, ridicularizando-o, e expressar-se em seus escritos de forma irreverente acerca de Sua Santidade, o grande agente e vicário de Cristo sobre a terra; e seus livros e papéis foram miraculosamente traduzidos pela ajuda da Providência que influencia teus próprios compatriotas".
Ao finalizar esta comedia legal, deram ao prisioneiro oito dias para considerar e resolver se iria converter-se à religião deles, tempo durante o qual, disse-lhe o inquisidor, ele mesmo, com outras ordens religiosas, o assistiria, para ajudá-lo nisso conforme ele desejar. Um dos jesuítas disse (fazendo primeiro o sinal da cruz sobre seu peito): "Filho meu, mereces ser queimado vivo; mas pela graça de nossa Senhora de Loreto, da qual tu blasfemaste, salvaremos tanto tua alma como teu corpo".
Pela manhã voltou o inquisidor, com outros três clérigos, e o primeiro perguntou quais eram as dificuldades em sua consciência que retardavam sua conversão. A isto respondeu ele que "não tinha dúvidas em sua mente, estando confiado nas promessas de Cristo, e acreditando com total certeza em sua vontade revelada dada nos Evangelhos, como o professa a Igreja Católica reformada, estando confirmado na graça, e tendo disso a certeza infalível da fé cristã". A isto o inquisidor respondeu: "Tu não és cristão, mas um absurdo herege, e sem conversão, um filho da perdição". O preso contestou que não pertencia à natureza e essência da religião e da caridade convencer por meio de palavras insultantes, de potros e de tormentos, senão por argumentos tomados das Escrituras; e que todos os outros métodos seriam totalmente ineficazes.
O inquisidor se enfureceu de tal modo ante as respostas do preso que o esbofeteou no rosto, empregando muitas palavras insultantes, e tentou apunhalá-lo, o que certamente teria feito se não o tiverem impedido os jesuítas; e desde este momento já ninguém visitou o preso.
No dia seguinte voltaram os dois jesuítas, com ar muito grave e solene, e o superior lhe perguntou que resolução tinha adotado. A isto o senhor Lithgow contestou que ele já havia tomado sua resolução, a não ser que pudessem dar-lhe razões de peso para fazê-lo mudar de posição. O superior, depois de uma pedante exposição de seus sete sacramentos, da intercessão dos santos, da transubstanciação, etc., se vangloriou enormemente de sua Igreja, de sua antigüidade, universalidade e uniformidade, coisas todas que o senhor Lithgow negou: "Porque a profissão de fé que eu sustento tem existido desde os dias dos apóstolos, e Cristo sempre teve sua própria Igreja (por muito obscuramente que fosse) no tempo de vossas trevas mais espessas".
Os jesuítas, vendo que seus argumentos não faziam o efeito desejado, que os tormentos não podia sacudir sua constância, e nem sequer o temor da cruel sentença que tinha todas as razões para esperar seria pronunciada e executada contra ele, o deixaram, depois de fazê-lhe graves ameaças. No oitavo dia, o último de sua Inquisição, quando se pronuncia a sentença, voltaram, mas muito mudados em suas palavras e conduta depois de repetir muito os mesmos argumentos mencionados anteriormente; pretenderam, com aparentes lágrimas nos olhos, que sentiam de coração que se visse obrigado a sofrer uma morte terrível, mas sobre tudo, pela perda de sua preciosissima alma; e, caindo de joelhos, clamaram: "Converte-te, converte-te, querido irmão, por amor de nossa bendita Senhora, converte-te".
A isto ele respondeu: "Não temo nem a morte nem a fogueira; estou pronto para as duas coisas".
Os primeiros efeitos que sofreu o senhor Lithgow da decisão deste sanguinário tribunal foi uma sentença para sofrer naquela noite onze torturas, e que se não morrer no curso de sua aplicação (o que era de se esperar razoavelmente, pelo mutilado e torturado que estava), seria, depois das festas da Páscoa, levado a Granada, para ser ali queimado até reduzir a cinzas. A primeira parte desta sentença foi executada naquela noite de forma bárbara; porém quis Deus dar-lhe força tanto de corpo como de mente, e manter-se firme na verdade, e sobreviver aos horrendos castigos que lhe foram infligidos.
Depois que os bárbaros aqueles se tiverem dado por satisfeitos por enquanto aplicando ao infeliz preso as mais refinadas crueldades, voltaram a colocá-lhe os ferros, e o devolveram a sua anterior masmorra. Na manhã seguinte recebeu um pouco de socorro do escravo turco já mencionado, quem lhe trouxe secretamente, em suas mangas, algumas passas e figos, que lambeu com toda a força que restava em sua língua. É a este escravo a quem atribuiu o senhor Lithgow o fato de sobreviver tanto tempo numa situação tão desumana, pois encontrou os meios para levá-lhe alguns destes frutos duas vezes por semana. É muito extraordinário, e digno de menção, que este pobre escravo, criado desde sua infância em base das máximas de seu profeta e de seus pais, e detestando ao máximo os cristãos, se sentiu tão afetado pelas terríveis circunstâncias do senhor Lithgow, que caiu doente, e assim permaneceu por espaço de quarenta dias. Durante este período, o senhor Lithgow foi atendido por uma mulher preta, escrava, que encontrou formas para dar-lhe ainda maior auxílio que o turco, ao conhecer a casa e a família. Ela trazia-lhe víveres a cada dia, e algo de vinho numa garrafa.
O tempo tinha já transcorrido de modo tal, e a situação era tão verdadeiramente horrenda, que o senhor Lithgow esperava ansioso o dia em que, vendo o fim de sua vida, veria também o fim de seus tormentos. Mas suas deprimentes expectativas foram interrompidas pela feliz interposição da Providência, e conseguiu sua liberdade graças às seguintes circunstâncias:
Aconteceu que um cavalheiro espanhol de alta estirpe chegou de Granada a Málaga, e convidado pelo governador, este o informou do que tinha acontecido com o senhor Lithgow desde o momento em que foi apreendido como espião, e lhe descreveu os diversos sofrimentos que havia padecido. Assim também lhe disse que, depois de saber que o prisioneiro era inocente, isso tinha-lhe provocado preocupação. Que por esta razão o teria libertado e feito alguma compensação pelos males que havia sofrido, mas que, ao inspecionar seus escritos, se acharam vários que eram de natureza blasfema, muito ridicularizadores de sua religião, e que, ao recusar abjurar destas opiniões heréticas, foi entregue à Inquisição, por quem tinha sido finalmente condenado.
Enquanto o governador estava relatando esta trágica história, um jovem flamengo (criado do cavalheiro espanhol) que servia à mesa ficou cheio de assombro e pena pelos sofrimentos do estranho assim descritos. Ao voltar ao alojamento de seu amor começou a girar em sua mente o que tinha ouvido, e que causou tal impressão sobre ele que não podia repousar em sua cama. Nos curtos sonhos que cochilou, sua imaginação o levava à pessoa descrita, sobre o potro, e ardendo no fogo. E passou a noite nesta ansiedade. Ao chegar a manhã, foi até a cidade, sem revelar suas intenções a ninguém, e perguntou pelo feitor inglês. Foi dirigido à casa de um tal senhor Wild, a quem contou tudo o que tinha ouvido na noite anterior, entre seu amo e o governador, mas não sabia o nome do senhor Lithgow. Contudo, o senhor Wild conjeturou que se tratasse dele, ao lembrar ao criado a circunstância de tratar-se de um viajante, e de tê-lo conhecido um pouco.
Ao ir embora o criado flamengo, o senhor Wild enviou imediatamente a buscar por outros feitores ingleses, aos que falou dos detalhes acerca de seu infortunado compatriota. Depois de uma breve consulta, acordaram enviar um informe de tudo o acontecido a Sir Walter Aston, o embaixador inglês ante o rei da Espanha, então em Madri. Isto foi assim feito, e o embaixador, tendo apresentado um memorando ao rei e conselho da Espanha, obteve a ordem para a liberação do senhor Lithgow, e sua entrega ao feitor inglês. Esta ordem ia dirigida ao governador de Málaga, e foi recebida com grande desgosto e surpresa por toda a assembléia da sanguinária Inquisição.
O senhor Lithgow foi liberado de seu encerro na véspera do Domingo de Páscoa, sendo conduzido desde seu calabouço em ombros do escravo que o tinha assistido, até a casa de um tal senhor Bobisch, onde foi feito objeto de todos os cuidados. Também providencialmente estava então ancorada no porto uma frota de naves inglesas, mandada por Sir Richard Hawkins, quem, ao ser informado dos sofrimentos e da atual situação do senhor Lithgow, acudiu em terra no dia seguinte, com uma guarda apropriada, e o recebeu de mãos dos mercadores. Foi de imediato levado, envolvido em mantas, a bordo da nave Vanguard, e três dias depois foi levado a outra nave, por ordem de Sir Robert Mansel, que ordenou que ele cuidasse pessoalmente do paciente. O feitor lhe deu roupas e todas as provisões necessárias, e além disso lhe deram duzentos reais de prata; e Sir Richard Hawkins lhe enviou duas pistolas duplas.
Antes de zarpar da costa espanhola, sir Richard Hawkins demandou a entrega de seus papeis, dinheiro, livros, etc., mas não pôde obter uma resposta satisfatória quanto a isso.
Não podemos deixar de fazer uma pausa para refletir quão manifestamente se interpus a Providência em favor deste pobre homem, quando estava já a borda de sua destruição; porque por sua sentença, diante da qual não poderia haver recurso algum, teria sido levado, poucos dias depois, a Granada, e queimado até ser reduzido a cinzas. E como aquele pobre criado ordinário, que não o conhecia em absoluto, nem podia ter interesse pessoal algum em sua preservação, arriscou o desagrado de seu amo, colocando em perigo sua própria vida, para revelar algo tão importante e perigoso a um cavalheiro desconhecido, de cuja discrição dependia sua própria existência. Mas por meio destes médios secundários é que interfere geralmente a Providência em favor dos virtuosos e oprimidos; e disto temos aqui um exemplo dos mais notáveis.
Depois de estar doze dias atracado na enseada, a nave zarpou, e depois de dois meses arribou a Deptford sã e salva. A manhã seguinte o senhor Lithgow foi levado numa liteira de penas a Theobalds, em Hertfordshire, aonde naquele então se encontravam o rei e a família real. Sua majestade estava naquele momento de caçaria, mas ao voltar pela tarde lhe apresentaram o senhor Lithgow, quem relatou os detalhes de seus sofrimentos e sua feliz liberação. O rei se sentiu tão afetado pela narração que expressou seu sentimento mais profundo, e deu ordem de que fosse enviado a Bath, e que suas necessidades fossem supridas apropriadamente de sua régia munificência. Por meio disto, na graça de Deus, após certo tempo o senhor Lithgow foi restaurado desde o antigo e mísero espetáculo a um excelente estado de saúde e fortaleza; porém, perdeu o uso de seu braço esquerdo, e vários dos ossinhos estavam tão esmagados e quebrados que ficaram inutilizados para sempre.
Apesar de todos os esforços, o senhor Lithgow jamais pôde obter a devolução de seus efeitos nem de seu dinheiro, embora sua majestade e os ministros do estado se interessaram em seu favor. Certo é que Gondamore, o embaixador espanhol, prometeu que lhe seria devolvidos todos seus bens, com o agregado de 1000 libras em dinheiro inglês, como uma espécie de compensação pela torturas que tinha sofrido, soma esta que deveria ser pagada pelo governador de Málaga. Mas estas promessas ficaram em meras palavras; e ainda o rei ser uma certa garantia de cumprimento, o astuto espanhol achou médios para evitar suas obrigações. A verdade é que tinha demasiada influência no conselho inglês na época daquele pacífico reinado, quando a Inglaterra permitiu ser intimidada sob uma escravizada complacência por parte da maioria dos estados e reis da Europa.

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