Recapitulação da Inquisição
Não se pode conhecer uma cifra exata das multidões sob a ação da Inquisição por todo o mundo. Mas onde quer que o papado tiver poder, ali havia um tribunal. Foi constituído incluso em Oriente, e a Inquisição portuguesa de Goa foi, até faz bem poucos anos, um exemplo de crueldade. América do Sul foi dividida em províncias da Inquisição e, com espantosa emulação dos crimes da mãe pátria, as chegadas dos vice-reis e outros festejos populares eram considerados incompletos sem um auto de fé. Os Países Baixos foram uma cena de matanças desde o momento do decreto que instaurou a Inquisição entre eles. Na Espanha é mais possível fazer cálculos. Cada um dos dezessete tribunais queimaram anualmente, durante um longo período, a dez pobres seres humanos. Devemos lembrar que isto teve lugar num país onde a perseguição tinha abolido durante séculos toda diferença religiosa, e onde a dificuldade não residia em achar uma estaca, senão a oferta. Contudo, inclusive na Espanha, onde a "heresia" tinha sido tão erradicada, a Inquisição pôde engrossar sua lista de assassinatos a trinta e dois mil. O número de queimados em efígie, ou de condenados a penitencias, castigos geralmente equivalentes ao desterro, confiscação e opróbrio para a descendência, ascendeu a trezentos e nove mil. Mas as multidões que pereceram nas câmaras de tortura, nos calabouços, e por corações partidos, os milhões de vidas dependentes que ficaram sem proteção alguma, ou que foram aceleradas em seu caminho ao túmulo pela morte das vítimas, estão além de todo registro: ou registradas somente por Aquele que jurou que "Se alguém leva em cativeiro, em cativeiro irá; se alguém matar à espada, necessário é que à espada seja morto" (Apocalipse 13:10, ACF).
Assim era a Inquisição, declarada pelo Espírito de Deus como sendo ao mesmo tempo a descendência e imagem do papado. Mas ao ver a realidade da paternidade, temos que contemplar os tempos. No século treze o papado estava na cima de seu domínio secular; era independente de todos os reinos; governava com uma influência jamais vista nem desde então possuída por cetro humano algum; era o soberano reconhecido de corpos e almas; para todos os propósitos humanos tinha um poder incomensurável, para bem e para mal. Poderia ter espalhado literatura, paz, liberdade e cristianismo até os confins da Europa, ou do mundo. Mas sua natureza era adversária; seu triunfo mais pleno somente exibiu seu mais completo mal; e, para vergonha da razão humana, e para terror e sofrimento da virtude humana, Roma, na hora de sua grandeza consumada, deu a luz, gerando o monstruoso e horrendo nascimento da INQUISIÇÃO!
CAPÍTULO 6: História das perseguições na Itália sob o papado
Passaremos agora a dar uma relação das perseguições na Itália, país que foi, e continua sendo:
1. O centro do papado.
2. A sede do Pontífice.
3. A fonte de vários erros que se estenderam por outros países, enganando as mentes de milhares, e difundido as nuvens da superstição e do fanatismo sobre as mentes do entendimento humano.
Ao prosseguir com nossa narração, incluiremos as mais destacadas perseguições que tiveram lugar, e as crueldades praticadas:
1. Pelo poder direto do Papa.
2. Pelo poder da Inquisição.
3. Por instigação de ordens eclesiásticas particulares.
4. Pelo fanatismo dos príncipes italianos.
Adriano pôs então a toda a cidade sob interdição, o que fez que todo o corpo do clero interviesse, e no final convenceu os senadores e o povo para que cedessem e permitissem que Arnaldo fosse desterrado. Acordado isto, ele recebeu a sentença do desterro, partindo para a Alemanha, onde continuou predicando contra o Papa e denunciando os graves erros da Igreja de Roma.
Por esta causa, Adriano sentiu-se sedento de vingança, e fez várias tentativas para apoderar-se dele; mas Arnoldo evitou durante longo tempo todas as armadilhas que lhe foram tendidas. Finalmente, ao aceder Frederico da Alemanha a dignidade imperial, pediu que o Papa o coroasse com suas próprias mãos. Adriano aquiesceu a isso, pedindo ao mesmo tempo ao imperador o favor de pôr em suas mãos a Arnaldo. O imperador entregou de imediato o infortunado predicador, que pronto caiu vítima da vingança de Adriano, sendo enforcado, e seu corpo reduzido às cinzas, na Apúlia. A mesma sorte sofreram vários de seus velhos amigos e companheiros.
Um espanhol chamado Encinas foi enviado a Roma, para ser criado na fé católico romana, porém, depois de ter conversado com alguns dos reformados, e tendo lido vários tratados que lhe puseram nas mãos, se converteu em protestante. Ao ser isto conhecido, após certo tempo, por ter em suas mãos um Novo Testamento em língua espanhola; mas achou um meio para fugir do cárcere antes do dia marcado para sua execução, e escapou à Alemanha.
Fanino, um erudito laico, se converteu à religião reformada mediante a leitura de livros de controvérsia. Ao informar-se disso o Papa, foi apreendido e lançado no cárcere. Sua mulher, filhos, parentes e amigos o visitaram em seu encerro, e trabalharam tanto sua mente que renunciou a sua fé e foi liberado. Mas assim como se viu livre do cárcere, sua mente sentiu a mais pesada das correntes: o peso de uma consciência culpada. Seus horrores foram tão grandes que os achou insuportáveis até voltar atrás de sua apostasia, e declarar-se totalmente convencido dos erros da Igreja de Roma. Para emendar sua queda, fez agora tudo o possível, da forma mais enérgica, para lograr conversões ao protestantismo, e conseguiu muitos êxitos em sua empresa. Estas atividades conduziram a seu segundo encarceramento, mas lhe ofereceram perdoar-lhe a vida sob tais condições. Rejeitou esta proposta com desdém, dizendo que aborrecia a vida sob tais condições. Ao perguntar eles por que iria ele a obstinar-se em suas opiniões, deixando a sua mulher e filhos na miséria, respondeu: "Não vou deixá-los na miséria; os tenho encomendado ao cuidado de um excelente administrador". "Que administrador?", perguntou o interrogador, com certa surpresa; Fanino contestou: "Jesus Cristo é o administrador, e não creio que poderia encomendá-los ao cuidado de ninguém melhor". O dia da execução apareceu sumamente alegre, o que fez dizer a um que o observava: "Estranha coisa é que apareçais feliz em tais circunstâncias, quando o mesmo Jesus Cristo, antes de sua morte, sentiu tal aflição que suou sangue e água". Ao que Fanino replicou: "Cristo agüentou todo tipo de angústias e conflitos, com o inferno e a morte, por nossa causa; e por isso, por Seus padecimentos, liberou os que verdadeiramente crêem nEle do temor deles". Foi estrangulado, e seu corpo reduzido às cinzas, que foram depois esparzidas no vento.
Dominico, um erudito militar, tendo lido vários escritos de controvérsia, deveio um zeloso protestante e, retirando-se a Placência, predicou o Evangelho em sua plena pureza ante uma considerável congregação. Um dia, ao terminar seu sermão, disse: "Se a congregação assistir amanhã, vou dar-lhes uma descrição do Anticristo, pintando-o com as cores exatas".
Uma grande multidão acudiu no dia seguinte, mas quando Dominico estava começando a falar, um magistrado civil subiu ao púlpito e o tomou sob custódia. Ele se submeteu de imediato mas, andando junto ao magistrado, disse estas palavras: "Já estava me estranhando que o diabo me deixasse tranqüilo tanto tempo!". Quando foi levado ao interrogatório, lhe fizeram esta pergunta: "Renunciarás às tuas doutrinas?", ao qual replicou: "Minhas doutrinas! Não sustento doutrinas próprias; o que predico são as doutrinas de Cristo, e por estas darei meu sangue, me considerarei feliz de poder padecer por causa de meu Redentor". Tentaram todos os métodos para fazê-lhe retratar-se na fé e que abraçasse os erros da Igreja de Roma; mas quando se acharam ineficazes as persuasões e as ameaças, foi sentenciado a morte, e enforcado na praza do mercado.
Galácio, um cavalheiro protestante, que vivia perto do castelo de Sant'Angelo, foi apreendido devido a sua fé. Seus amigos se esforçaram tanto que se desdisse, e aceitou várias das supersticiosas doutrinas propagadas pela Igreja de Roma. Contudo, percebendo seu erro, renunciou publicamente a sua negação. Apreendido por isso, foi sentenciado a ser queimado, e em conformidade com esta ordem foi acorrentado na estaca, onde foi deixado para várias horas antes de pôr fogo na lenha, para deixar tempo a sua mulher, parentes e amigos, que o rodeavam, a induzi-lo a mudar de opinião. Mas Galeácio reteve sua decisão, e rogou ao carrasco que acendesse o fogo que devia consumi-lo. No final o fez, e Galeácio foi prontamente consumido pelas chamas, que queimaram com assombrosa rapidez, e o privaram do conhecimento em poucos minutos.
Pouco depois da morte deste cavalheiro, muitos protestantes foram mortos em vários lugares da Itália por sua fé, dando uma prova segura de sua sinceridade em seus martírios.
Uma relação das perseguições na Calábria
No século quatorze, muitos dos valdenses de Pragela e do Delfinado emigraram à Calábria, e se estabeleceram numas paragens áridas, com a permissão dos nobres daquele país, e pronto, com um laborioso cultivo, levaram a vários lugares agrestes e estéreis o verdor e a fertilidade.
Os senhores calabreses sentiram-se extremamente comprazidos com seus novos súbditos e arrendatários, já que eram calmos, plácidos e laboriosos; mas os sacerdotes daquele lugar apresentaram várias queixas contra eles em sentido negativo, porque, não podendo acusá-los de nada mau que fizessem, basearam suas acusações no que não faziam, e os acusaram de:
• Não serem católico-romanos.
• Não fazerem sacerdotes nenhuma de suas crianças.
• Não fazer freiras nenhuma de suas filhas.
• Não acudir à Missa.
• Não dar círios de cera a seus sacerdotes como ofertas.
• Não ir em peregrinação.
• Não inclinar-se ante as imagens.
Contudo, os senhores calabreses aquietaram os sacerdotes, dizendo-lhes que estas pessoas eram extremamente pacificas, que não ofendiam os católico-romanos, e que pagavam bem dispostos os dízimos aos sacerdotes, cujos ingressos tinham aumentado consideravelmente ao chegar eles no país e que, portanto, deveriam ser os últimos em queixar-se deles.
As coisas foram toleravelmente bem depois disto por alguns anos, durante os que os valdenses se constituíram em duas cidades corporativas, anexando vários povos a sua jurisdição. No final enviaram a Genebra uma petição de dois clérigos, um para predicar em cada cidade, porque decidiram fazer uma pública confissão de fé. Ao saber disto o Papa Pio IV, decidiu exterminar os da Calábria.
A este fim enviou o cardeal Alexandrino, homem do mais violento temperamento e fanático furioso, junto com dois monges, à Calábria, onde deviam agir como inquisidores. Estas pessoas, com suas autorizações, acudiram a St. Xist, uma das cidades edificadas pelos valdenses e, tendo convocado o povo, disseram-lhes que não receberiam dano algum se aceitavam os predicadores designados pelo Papa; e para que suas intenções pudessem ser conhecidas de todos, se diria uma missa pública naquela tarde, a qual lhes ordenavam assistir.
O povo de St. Xist, em lugar de assistir à missa, fugiu aos bosques com suas famílias, frustrando assim o cardeal e seus coadjutores. O cardeal se dirigiu então a La Garde, a outra cidade pertencente aos valdenses, onde, para que não lhe acontecesse como em St. Xist, ordenou o fechamento de todas as portas, e que fossem guardadas todas as avenidas. Se fizeram depois as mesmas propostas que antes haviam realizado aos habitantes de St. Xist aos habitantes de La Garde, porém com este adicional: o cardeal assegurou-lhes que os habitantes de St. Xist tinham acedido de imediato, e aceitado que o Papa lhes designasse predicadores. Esta falsidade teve êxito, porque o povo de La Garde, pensando que o cardeal dizia a verdade, disse que seguiriam de idêntica forma o exemplo de seus irmãos.
O cardeal, tendo logrado ganhar esta vitória enganando a gente da cidade, enviou tropas para dar morte aos da outra. Assim, enviou soldados aos bosques, para que perseguissem como feras os habitantes de St. Xist, e lhes deu ordens estritas de não perdoar nem idade nem sexo, senão matar a todos os que vissem. As tropas entraram no bosque, e muitos caíram vítimas de sua ferocidade antes que os valdenses chegassem a saber de seus desígnios. Finalmente, decidiram vender suas vidas tão caras como possível, e tiveram lugar vários combates, nos quais os valdenses, mal armados, realizaram várias façanhas valorosas, e muitos morreram por ambas as partes. Tendo sido mortos a maior parte dos soldados em diferentes encontros, o resto se viu obrigado a retirar-se, o que enfureceu tanto o cardeal que escreveu ao vice-rei de Nápoles pedindo reforços.
O vice-rei ordenou imediatamente uma proclamação por todos os territórios de Nápoles, que todos os bandidos, desertores e outros proscritos seriam perdoados de seus delitos sob a condição de que se unissem à campanha contra os habitantes de St. Xist, e de que permanecessem em serviço de armas até que aquelas pessoas foram exterminadas.
Muitos desesperados acudiram a esta proclama e, constituídos em companhias ligeiras, foram enviados a explorar o bosque e dar morte a todos os que achassem da religião reformada. O vice-rei próprio se uniu ao cardeal, à cabeça de um corpo das forças regulares, e juntos fizeram tudo que puderam para fustigar a pobre gente escondida no bosque. Alguns foram capturados e enforcados nas árvores; cortaram galhos e os queimaram, ou os abriram em canal, deixando seus corpos para que fossem devorados pelas feras ou aves de rapina. Muitos foram mortos a disparos, mas a maioria foi caçada a modo de esporte. Uns poucos se ocultaram em cavernas, mas a fome os destruiu em sua retirada; assim morreram estas coitadas pessoas, por vários médios, para dar satisfação à fanática malícia de seus impiedosos perseguidores.
Apenas se tinham sido exterminados os habitantes de St. Xist, os de La Garde atraíram a atenção do cardeal e do vice-rei.
Foi-lhes oferecido que, se abraçassem a fé católico romana, não lhes fariam dano a eles nem a suas famílias, senão que lhes devolveriam suas casas e propriedades, e que a ninguém lhe seria permitido incomodá-los; porém, se recusassem, esta misericórdia (como a chamavam), se utilizariam os meios mais extremos e a conseqüência de sua não colaboração seriam as mortes mais cruéis.
Apesar das promessas por uma parte, e das ameaças pela outra, estas dignas pessoas se negaram unanimemente e renunciar a sua religião, ou a abraçar os erros do papado. Isto exasperou o cardeal e o vice-rei a ponto de que trinta deles foram colocados de imediato no potro do tormento, para aterrorizar o resto.
Os que foram colocados no potro foram tratados com tal dureza que vários deles morreram sob as torturas; um tal Charlin, em concreto, foi tratado tão cruelmente que seu ventre arrebentou, suas entranhas se espalharam, e expirou na mais atroz agonia. Porém estas atrocidades não serviram para o propósito para o que tinham sido dispostas, porque os que restaram com vida depois do potro, tanto como os que não o haviam experimentado, se mantiveram constantes em sua fé, e declararam abertamente que nenhuma tortura do corpo nem terrores da mente os levariam jamais a renunciar a seu Deus, ou a adorar imagens.
Vários destes foram então, por ordem do cardeal, despidos e açoitados com varas de ferro; e alguns deles foram despedaçados com grande facas; outros foram lançados desde a parte superior de uma alta torre, e muitos foram cobertos com breu, e queimados vivos.
Um dos monges que assistiam o cardeal, de um talante natural selvagem e cruel, pediu permissão para derramar algo Deus sangue daquela pobre gente com suas próprias mãos e, sendo-lhe concedido, aquele bárbaro tomou um grande cutelo e degolou oitenta homens, mulheres e crianças, com tão pouco remorso como um açougueiro que der morte a outras tantas ovelhas. Depois deu ordem de que cada um desses corpos fossem esquartejados, os quartos colocados em estacas, e estas encravadas em distintas partes da região, dentro de um rádio de cinqüenta quilômetros.
Os quatro principais homens de La Garde foram enforcados, e o ministro foi lançado desde a parte superior da torre de sua igreja. Ficou horrivelmente mutilado, porém não morreu na queda; ao passar o vice-rei perto dele, disse: "Ainda está vivo este cão? Levai-o e lançai-o aos porcos", e por brutal que possa parecer esta sentença, foi executada de maneira exata.
Sessenta mulheres sofreram tão violentamente no potro que as cordas traspassaram seus braços e pernas até perto do osso; ao serem enviadas de volta para a prisão, suas feridas gangrenaram, e morreram do modo mais doloroso. Muitos outros foram mortos mediante os tormentos mais cruéis, e se algum católico-romano mais compassivo que os outros intercedia pelos reformados, era preso de imediato, e partilhava a mesma sorte como favorecedor de hereges.
Vendo-se o vice-rei obrigado a voltar a Nápoles, por alguns assuntos importantes que demandavam sua presença, e sendo o cardeal chamado de volta a Roma, o marquês de Butane recebeu a ordem de dão o golpe final ao que eles haviam começado; o que executou, agindo com um rigor tão bárbaro que não restou uma só pessoa da religião reformada viva em toda a Calábria.
Assim, uma grande quantidade de pessoas inofensivas e pacificas foram privadas de suas possessões, roubadas de suas propriedades, expulsadas de seus lares, e ao final assassinadas de várias formas, somente por não querer sacrificar suas consciências às superstições de outrem, nem abraçar doutrinas idólatras que aborreciam, nem aceitar mestres nos que não podiam acreditar.
A tirania se manifesta de três formas: a que escraviza a pessoa, a que se apodera das propriedades, e a que prescreve e determina a mente. As duas primeiras classes podem ser chamadas de tiranias civis, e foram praticadas por soberanos arbitrários em todas as épocas, que se deleitaram em atormentar as pessoas e em roubar as propriedades de seus infelizes súbditos. Mas a terceira classe, isto é, a que prescreve e determina a mente, pode receber o nome de tirania eclesiástica; esta é a pior classe de tirania, por incluir as outras duas classes; pois o clero romanista não só tortura o corpo e rouba as propriedades daqueles aos quais persegue, senão que arrebata as vidas, atormenta as mentes e, se possível, imporia sua tirania sobre as almas de suas infelizes vítimas.
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