Uma relação das perseguições na Veneza
Enquanto que o estado da Veneza esteve livre de inquisidores, um grande número de protestantes fixaram ali sua residência, e houve muitos convertidos por causa da pureza das doutrinas que professavam, e da afabilidade da conduta que observavam
Ao ser o Papa informado do grande auge do protestantismo, enviou inquisidores a Veneza no ano 1542, para indagar nesta questão e apreender os que pudesse considerar como pessoas perniciosas. Com isto começou uma severa perseguição, e muitas pessoas dignas foram martirizadas por servirem a Deus com pureza, escarnecendo dos enfeites da idolatria.
Foram muitas as formas nas que foi-lhes tirada a vida aos protestantes; porém, descreveremos um método particular, que foi inventado por vez primeira para esta ocasião; tão logo como a sentença era pronunciada, se colocava ao preso uma corrente de ferro que atravessava uma grande pedra amarrada a seu corpo. Depois era colocado plano sobre uma prancha de madeira, boca para acima, e o remavam entre duas barcas até uma certa distância mar adentro, quando as duas barcas se separavam, e era afundado pelo peso da pedra.
Se alguém rejeitava a jurisdição dos inquisidores em Veneza, era enviado a Roma, onde era lançado a propósito numas masmorras cheias de umidade, nunca chamados a juízo, com o qual morriam miseravelmente de inanição no cárcere.
Um cidadão de Veneza, Antônio Ricetti, apreendido como protestante, foi sentenciado a ser afogado da forma já descrita. Poucos dias antes da data indicada para sua execução, seu filho foi a vê-lo, suplicando-lhe que se desdissesse, para salvar sua vida e ele mesmo não ficar órfão. A isto o pai respondeu: "Um bom cristão tem o dever de entregar não só seus bens e seus filhos, senão a vida mesma, pela glória de seu Redentor; por isso, estou resolvido a sacrificá-lo tudo neste mundo passageiro, por amor à salvação num mundo que permanecerá eternamente".
Os senhores da Veneza também lhe fizeram saber que se abraçava a religião católica-romana, não somente lhe dariam sua vida, senão que remiriam uma considerável finca que ele havia hipotecado, e a dariam a ele como presente. Não obstante, recusou absolutamente aceitar tal coisa, enviando recado aos nobres de que valorizava mais sua alma que todas as outras considerações; ao dizer-lhe que um companheiro de prisão chamado Francisco Segura tinha-se arrependido, respondeu: "Se tiver abandonado a Deus, compadeço-me dele; porém eu permanecerei firme em meu dever". Vendo inúteis todos os esforços por persuadi-lo a renunciar a sua fé, foi executado em conformidade à sentença, morrendo com grande presença de ânimo, e encomendando fervorosamente sua alma ao Todo Poderoso.
O que tinham falado a Ricetti acerca da apostasia de Francisco Segura era absolutamente falso, e jamais tinha oferecido desdizer-se, antes se manteve firme em sua fé, sendo executado poucos dias após Ricetti, e da mesma forma.
Francisco Spinola, um cavalheiro protestante de grande erudição, apreendido por ordem dos inquisidores, foi levado perante seu tribunal. Lhe apresentaram então um tratado acerca da Ceia do Senhor, perguntando-lhe se conhecia seu autor. A isto ele responder: "Me confesso seu autor, e ao mesmo tempo afirmo solenemente que não há uma única linha nele que não esteja autorizada por e seja consoante com as Sagradas Escrituras". Por esta confissão foi enviado isolado a uma masmorra durante vários dias.
Comparecendo para um segundo interrogatório, acusou o legado do Papa e os inquisidores de serem uns bárbaros sem misericórdia, e depois expus as superstições e idolatrias praticadas pela Igreja de Roma sob uma luz tão fulgurante que ninguém pôde refutar seus argumentos; logo o mandaram a sua masmorra, para fazê-lo arrepender-se do que tinha falado.
Em seu terceiro interrogatório lhe perguntaram se iria desdizer-se de seus erros. Respondeu então que as doutrinas que mantinha não era errôneas, sendo puramente as mesmas que haviam ensinado Cristo e seus apóstolos, e que nos tinham sido transmitidas nas Sagradas Escrituras. os inquisidores o sentenciaram então a morrer afogado, o que se executou da forma já descrita. Foi à morte com a maior serenidade, parecendo anelar a dissolução, e declarando que a prolongação de sua vida somente servia para demorar aquela verdadeira felicidade que somente podia esperar-se no mundo vindouro.
Uma relação de várias pessoas notáveis que foram martirizadas em distintas partes da Itália, por causa de sua religião
João Mollius tinha nascido em Roma, de pais de boa posição social. Aos doze anos o ingressaram no convento dos Frades Cinza, onde fez um progresso tão rápido nas artes, as ciências e as línguas que aos dezoito anos lhe permitiram tomar a ordem sacerdotal.
Foi enviado a Ferrara, onde, depois de estudar durante mais seis anos, foi designado leitor teológico da universidade daquela cidade. Porém agora, desafortunadamente, empregava seus talentos para disfarçar as verdades do evangelho e para recobrir os erros da Igreja de Roma. Após passar alguns anos de residência em Ferrara, passou à universidade de Bolonha, na qual veio ser professor. Ao ler alguns tratados escritos por ministros da religião reformada, ficou plenamente consciente dos erros do papado, e pronto virou um zeloso protestante em seu coração.
Decidiu então expor, seguindo a pureza do Evangelho, a Epístola de são Paulo aos Romanos num curso regular de sermões. A aglomeração de pessoas que seguia de contínuo suas predicações era surpreendente, porém quando os sacerdotes souberam o teor de suas doutrinas, enviaram uma relação do assunto a Roma, com o que o Papa enviou um monge, chamado Cornélio, a Bolonha, para expor a mesma epístola segundo os artigos da Igreja de Roma. Contudo, a gente achou tal disparidade entre os dois predicadores que a audiência de Mollius aumentou, e Cornélio se viu obrigado a predicar a bancos vazios.
Cornélio escreveu um comunicado de seu nulo êxito ao Papa, que imediatamente enviou uma ordem para apreender a Mollius, quem foi aprisionado, e guardado isolado. O bispo de Bolonha mandou-lhe dizer que deveria desdizer-se ou ser queimado; porém ele apelou à Roma, e foi enviado lá.
Em Roma rogou lhe fosse concedido ter um juízo público, mas o Papa se negou categoricamente a isto, e lhe ordenou que rendesse conta de suas opiniões por escrito, o qual ele fez sob os seguintes encabeçamentos:
Pecado original. Livre arbítrio. A infalibilidade da Igreja de Roma. A infalibilidade do Papa. A justificação pela fé. O Purgatório. A transubstanciação. A missa. A confissão auricular. As orações pelos mortos. A hóstia. As orações aos santos. As peregrinações. A extrema-unção. Os serviços numa língua desconhecida, etc., etc.
Tudo isso o confirmou em base da autoridade das Escrituras. o Papa, nesta ocasião e por razões políticas, o pus em liberdade, mas pouco depois o fez apreender e executar, sendo primeiro enforcado, e seu corpo depois queimado até reduzi-lo a cinzas, em 1553.
No ano seguinte, foi apreendido Francisco Gambá, um Lombardo, de religião protestante, e condenado a morte pelo senado de Milan. No lugar da execução um monge lhe apresentou uma cruz, e ele disse: "Minha mente está tão cheia dos verdadeiros méritos e da bondade de Cristo que não quero utilizar um pedaço de pau inservível para trazer Ele a minha mente". Por dizer isto lhe furaram a língua, e depois o queimaram.
Em 1555 Algério, estudante na universidade de Pádua, e homem de grande erudição, fez tudo o que estava em seu poder para convertes a outros. Por estas ações foi acusado de heresia diante do Papa, e apreendido, foi lançado no cárcere de Veneza.
O Papa, informado da grande erudição de Algério, e de suas surpreendentes capacidades inatas, achou que seria de infinito serviço à Igreja de Roma e tentou, mediante as promessas mais profanas, ganhá-lo para seus propósitos. Mas ao ver inúteis seus esforços, ordenou que fosse queimado, sentença que foi oportunamente cumprida.
Em 1559 João Alloysius, enviado de Genebra para predicar na Calábria, foi ali apreendido como protestante, levado a Roma e queimado por ordem do Papa. Da mesma forma e pelas mesmas razões foi queimado em Messina Tiago Bovellus.
No ano 1560, o Papa Pio IV ordenou que todos os protestantes fossem severamente perseguidos nos estados italianos, e grandes números de toda idade, sexo e condição sofreram o martírio. A respeito das crueldades praticadas nesta ocasião, um erudito e humano católico-romano se referiu assim a eles, numa carta a um nobre senhor: "Não posso, meu senhor, deixar de revelar-vos meus sentimentos, a respeito das perseguições que estão dando-se agora. Creio que é algo cruel e desnecessário. Tremo ante a forma de dar morte, se parece mais a uma carnificina de bezerros e ovelhas que à execução de seres humanos. Relatarei a sua senhoria uma terrível cena, da qual eu mesmo fui testemunha presencial. Setenta protestantes estavam jogados juntos numa imunda masmorra; o carrasco entrou entre eles, tomou a um dentre o resto, o tirou a um lugar aberto fora da prisão, e lhe cortou a garganta com a maior calma. Depois entrou calmamente na prisão, ensangüentado como estava, e com o cutelo na mão selecionou um outro, e o matou da mesma forma. E isto, senhoria, o repetiu até ter dado morte a todos. Deixo aos sentimentos de sua senhoria julgar acerca de minhas sensações nesta ocasião; minhas lágrimas caem agora sobre o papel no que estou escrevendo. Outra coisa que devo mencionar: a paciência com a que afrontaram a morte. Pareciam ser todo resignação e piedade, orando fervorosos a Deus, e enfrentando-se animosos a sua sorte. Não posso pensar sem tremer em como o verdugo aferrada a faça entre os dentes; que terrível figura constituía, coberto de sangue, e com quanta despreocupação executava seu bárbaro ofício".
Um jovem inglês que estava em Roma, passava um dia junto a uma igreja justo quando saiu a procissão da hóstia. Um bispo levava a hóstia, e vendo-a o jovem, arrebatou-a, a lançou no chão e a calcou a seus pés, gritando: "Miseráveis idólatras, que deixais o verdadeiro Deus, para adorar um pedaço de comida!". Esta ação provocou de tal modo o povo que teria despedaçado o jovem naquele mesmo momento, mas os sacerdotes persuadiram a multidão que o deixassem para que fosse sentenciado pelo Papa.
Quando contaram o assunto ao Papa, este sentiu-se sumamente exasperado, e ordenou que o preso fosse queimado de imediato; porém um cardeal o dissuadiu desta apressada sentença, dizendo-lhe que seria melhor castigá-lo gradualmente e torturá-lo, para poder descobrir se tinha sido instigado por alguma pessoa determinada a cometer uma ação tão atroz.
Aprovado isto, foi torturado com a maior severidade, porém só conseguiram tirá-lhe estas palavras: "Era a vontade de Deus que eu fizesse o que fiz". Então o Papa pronunciou sentença contra ele:
1) Que o carrasco o levasse com o torso nu pelas ruas de Roma.
2) Que levasse a imagem do diabo sobre sua cabeça.
3) Que lhe pintassem nas calcas uma representação das labaredas.
4) Que lhe cortassem a mão direita.
5) Que depois de ter sido assim levado em procissão, fosse queimado.
Quando ouviu esta sentença, implorou a Deus que lhe der força e integridade para manter-se firme. Ao passar pelas ruas, foi enormemente escarnecido pelo povão, aos quais falou algumas coisas severas acerca da superstição romanista. Mas um cardeal que o ouviu, ordenou que o amordaçassem.
Quando chegou à porta da igreja onde havia pisoteado a hóstia, o carrasco lhe cortou a mão direita, e a encravou num pau. Depois dois torturadores, com tochas acesas, abrasaram e queimaram seus carne todo o resto do caminho. Ao chegar no lugar da execução beijou as correntes que haviam amarrado a estaca. Ao apresentá-lhe um monge a figura de um santo, bateu nela lançando-a no chão; depois, acorrentando-o na estaca, acenderam a lenha, e pronto ficou reduzido a cinzas.
Pouco depois da execução acabada de mencionar, um venerável ancião, que tinha permanecido muito tempo preso da Inquisição, foi condenado à fogueira, e tirado para ser executado. Quando estava já acorrentado à estaca, um sacerdote susteve um crucifixo diante dele, e lhe disse: "Se você não tirar este ídolo de minha vista, serei obrigado a cuspir nele". O sacerdote o repreendeu por falar tão duramente, porém ele lhe disse que lembrasse do primeiro e do segundo mandamento, e que se afastasse da idolatria, como Deus mesmo tinha ordenado. Foi então amordaçado, para que já não falasse, e pondo fogo na lenha, sofreu o martírio no fogo.
Uma relação das perseguições no Marquesado de Saluzes
O Marquesado de Saluzes, no limite meridional dos vales do Piemonte, estava, no ano 1561, principalmente habitado por protestantes; então o marquês, proprietário daquelas terras, começou uma perseguição contra eles, por instigação do Papa. Começou desenterrando aos ministros, e se alguém deles recusasse abandonar sua grei, podiam ter a certeza de serem encarcerados e torturados com severidade. Contudo, não chegou tão longe como para dar morte a ninguém.
Pouco depois o marquesado caiu em possessão do duque de Sabóia, que enviou cartas circulares a todas as cidades e povoados, dizendo que esperava que todo o povo se conformasse com assistir à missa.
Os habitantes de Saluzes, ao receberem esta carta, lhe enviaram como resposta uma epístola geral.
O duque, após ler a carta dele, não interrompeu os protestantes por algum tempo; porém afinal enviou-lhes uma comunicação dizendo-lhes que ou assistiam à missa, ou então deveriam deixar seus domínios em quinze dias. Os protestantes, ante este inesperado édito, enviaram um representante ante o duque para lograr sua revogação, ou pelo menos que fosse moderado. Mas foram vãos seus protestos, e foi-lhes dito que o édito era absoluto.
Alguns foram o suficientemente fracos como para aceitar ir à missa a fim de evitar o desterro e preservar suas propriedades; outros foram embora, com todas suas possessões, a outros países; e muitos deixaram passar o tempo de modo tal que se viram obrigados a abandonar tudo quanto possuíam de valor, e deixar o marquesado às pressas. Os infelizes que ficaram para trás foram apressados, saqueados e mortos.
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