Uma relação das perseguições nos vales do Piemonte no século dezessete
O Papa Clemente VIII enviou missionários aos vales do Piemonte para induzir os protestantes a renunciarem a sua religião. Estes missionários erigiram mosteiros em várias partes dos vales, e provocaram muitos problemas no dos reformados, onde os conventos apareceram não só como fortalezas para dominar, senão também como refúgios para todos os que lhes fizessem qualquer dano.
Os protestantes fizeram uma petição ao duque de Sabóia contra estes missionários, cuja insolência e maus-tratos tinham-se tornado intoleráveis; mas em vez de fazê-lhes justiça, prevaleceu o interesse dos missionários até o ponto em que o duque publicou um decreto, no qual declarou que uma única testemunha que puder aportar a certeza de um protestante ter cometido qualquer crime, teria direito a cem coroas.
Pode-se imaginar facilmente que ao publicar-se um decreto desta natureza muitos protestantes caíram mártires ante o perjúrio e a avareza; porque vários papistas vilões estavam dispostos a jurar qualquer coisa contra um protestante por amor à recompensa, e depois correrem velozes a seus sacerdotes para obter a absolvição por seus falsos juramentos. Se algum católico-romano com mais consciência que o resto censurava estes sujeitos por seus atrozes crimes, via-se em perigo de ser ele mesmo denunciado e exposto como favorecedor de hereges.
Os missionários fizeram tudo o possível por conseguir os livros dos protestantes, para queimá-los. Fazendo estes tudo o possível por escondê-los, os missionários escreveram ao duque de Sabóia, o qual, para castigar os protestantes pelo horrendo crime de não entregarem suas bíblicas, livros de oração e tratados religiosos, enviou umas companhias de soldados para que se aquartelassem em suas casas. Estes militares causaram graves destroços nas casas dos protestantes, e destruíram tanta quantidade de alimentos e bens que muitas famílias ficaram totalmente arruinadas.
Para alentar tanto como for possível a apostasia dos protestantes, o duque de Sabóia fez uma proclama na qual dizia: "Para alentar os hereges a tornar-se católicos, é nossa vontade e beneplácito, e assim o ordenamos expressamente, que todos os que abracem a santa fé católica-romana gozarão de uma isenção de todos e cada um dos impostos por espaço de cinco anos, a partir do dia de sua conversão". O duque de Sabóia estabeleceu também um tribunal, chamado "Conselho para a extirpação dos hereges". Este tribunal devia realizar indagações acerca dos antigos privilégios das igrejas protestantes, e dos decretos que se haviam promulgado, de tanto em tanto, em favor deles. Mas a investigação destas coisas se fez com a mais descarada parcialidade; manipulou-se o sentido das antigas cartas de direitos, e se utilizaram sofismas para perverter o sentido de tudo aquilo que tendia a favorecer os reformados.
Como se todas estas duras ações não fossem suficientes, o duque publicou pouco depois outro édito no qual se mandava de forma estrita que nenhum protestante podia ser professor, ou tutor, nem em público nem em privado, e que não podia ousar ensinar arte, nem ciência, nem língua nenhuma, nem direta nem indiretamente, a ninguém, fosse qual for sua religião.
Este édito foi seguido de imediato por outro que decretava que nenhum protestante poderia ocupar cargo algum de benefício, confiança ou honra. Para deixá-lo tudo amarrado, e como prenda certa de uma próxima perseguição, se promulgou um édito final no que se ordenava positivamente que todos os protestantes deviam assistir à missa.
A publicação de um édito com esta ordem pode comparar-se com o levantamento de uma bandeira vermelha; porque a conseqüência certa do mesmo devia ser o assassinato e o saqueio. Um dos primeiros em atrair a atenção dos papistas foi Sebastião Basan, um zeloso protestante, que foi apreendido pelos missionários, encerrado, atormentado por espaço de quinze meses, e depois queimado.
Antes desta perseguição, os missionários tinham empregado seqüestradores para roubar os filhos dos protestantes, para poder criá-los secretamente como católico-romanos; porém agora arrebatavam os filhos pela força, e se encontravam alguma resistência, assassinavam os pais.
Para dar maior força à perseguição, o duque de Sabóia convocou uma assembléia geral de nobres e gentis-homens católico-romanos, na que se promulgou um solene édito contra os reformados, contendo muitos artigos, e incluindo várias razões para extirpar os protestantes, entre as quais se davam as seguintes:
1) Para a preservação da autoridade real.
2) Para que todas as rendas eclesiásticas estivessem sob uma forma de governo.
3) Para unir todos os partidos.
4) Em honra de todos os santos e das cerimônias da Igreja de Roma.
Este severo édito foi seguido por uma cruel ordem, publicada o 25 de janeiro de 1655, sob a sanção do duque, por Andrés Gastaldo, doutor em leis civis. Esta ordem estabelecia "que todos os cabeça de família, com os componentes daquelas famílias, da religião reformada, fosse qual for sua categoria, fortuna ou condição, sem exceção alguma, dos habitantes e possuidores de terras em Lucerna, St. Giovanni, Bibiana, Campiglione, St. Secondo, La Torre, Fenile e Bricherassio, devia, no termo de três dias da publicação do decreto, retirar-se e partir, e ser expulsos dos mencionados lugares, e conduzidos aos lugares e limites tolerados por sua alteza durante seu beneplácito; em particular Bobbio, Angrogne, Vilário, Rorata e o condado de Boneti.
Tudo isto devia executar-se sob pena de morte e confiscação de casa e bens, a não ser que dentro do prazo se convertessem em católico-romanos.
Já se pode conceber que uma fuga com tal breve prazo, na metade do inverno, não era tarefa grata, especialmente num país quase rodeado de montanhas. A repentina ordem afetava a todos, e coisas que apenas se teriam sido observadas em outras ocasiões agora apareciam de forma evidente. Mulheres grávidas, ou mulheres que acabavam de dar a luz, não constituíam exceções para esta súbita ordem de desterro, porque todos estavam incluídos nela; e, desafortunadamente, aquele inverno era inusitadamente severo e rigoroso.
Mas os papistas expulsaram a gente de suas moradas no dia indicado, sem nem sequer permiti-lhes suficientes roupas para abrigar-se; muitos morreram nos montes devido à dureza do clima, ou por falta de alimentos. Alguns que ficaram para trás depois da execução do édito acharam um tratamento mais duro, assassinados pelos habitantes papistas, ou mortos a tiros pelas tropas aquarteladas nos vales. Uma descrição particular destas crueldades aparece numa carta, escrita por um protestante que estava no lugar, mas que felizmente escapou da matança. "Tendo-se instalado o exército (diz ele) no lugar, aumentou em número pela adição de uma multidão de habitantes papistas de lugares vizinhos, que ao verem que éramos presa para o botim, se lançaram sobre nós com furioso ímpeto. Aparte das tropas do duque de Sabóia e dos habitantes papistas havia alguns regimentos de auxiliares franceses, algumas companhias das brigadas irlandesas, e vários bandos de fora-da-lei, contrabandistas e presos, aos que tinham-lhes prometido o perdão e a liberdade neste mundo, e absolvição no vindouro, por ajudar no extermínio dos protestantes do Piemonte".
"Esta multidão armada, alentada pelos bispos e monges católico-romanos, caiu sobre os protestantes da forma mais furiosa. Nada se podia ver agora senão rostos horrorizados e desesperados; o sangue tingia o solo das casas, as ruas estavam cheias de cadáveres; ouviam-se gemidos e clamores por todas partes. Alguns se armaram e se enfrentaram às tropas; e muitos, com suas famílias, fugiram aos montes. Num povo atormentaram cruelmente às mulheres e crianças depois que os homens tivessem fugido, cortando as cabeças das mulheres e descerebrando as crianças. Nos povos de Vilário e Bobbio tomaram a maioria dos que haviam-se recusado assistir à missa, de quinze anos para acima, e os crucificaram cabeça abaixo; e a maioria dos que estavam embaixo daquela idade foram estrangulados".
Sara Rastignole des Vignes, uma mulher de sessenta anos, apresada por alguns soldados, recebeu a ordem de rezar a alguns santos; ao recusar, cravaram-lhe uma foice no ventre, a destriparam, e depois lhe cortaram a cabeça.
Martha Constantine, uma formosa jovem, foi tratada com grande indecência e crueldade por vários dos soldados, que primeiro a violentaram, e depois a mataram cortando-lhe os seios. Depois os fritaram, e os deram a comer a alguns de seus camaradas, que os comeram sem saber de que se tratava. Quando os acabaram de comer, os outros disseram-lhes de que era aquele prato, e surgiu uma briga, saíram a reluzir as espadas, e se deu uma batalha. Vários foram mortos na peleja, a maioria deles aqueles que haviam tomado parte nesta horrenda morte, e que haviam cometido um engano tão desumano contra seus próprios companheiros.
Alguns dos soldados apreenderam um homem de Thrassinière, e lhe traspassaram os ouvidos e os pés com suas espadas. Depois lhe arrancaram as unhas dos dedos das mãos e dos pés com pinças candentes, o amarraram à cauda de um asno, e o arrastaram pelas ruas; finalmente lhe amarraram uma corda em volta da cabeça, e o sacudiram com um pau com tal força que a arrancaram do corpo.
Pedro Symons, um protestante de uns oitenta anos, foi amarrado pelo pescoço e os calcanhares, e depois lançado num precipício. Em sua queda, o galho de uma árvore prendeu as cordas que o amarravam, e ficou pendurado entre o céu e a terra, de modo que enlanguesceu durante vários dias, e finalmente morreu de fome.
Por recusar renunciar a sua religião, Esay Garcino foi cortado em pedaços. Os soldados diziam, zoando, que "fizeram picadinho" dele. Uma mulher, chamada Armanda, foi esquartejada, e depois seus membros foram pendurados sobre uma cerca. Duas anciãs foram destripadas e depois deixadas no campo sobre a neve, onde morreram; e a uma mulher muito anciã, que era deforme, lhe cortaram o nariz e as mãos, e a deixaram sangrar até morrer.
Muitos homens, mulheres e crianças foram lançados desde as rochas e esmagados. Madalena Bertino, uma mulher protestante de La Torre, foi completamente despida, lhe amarraram a cabeça entre as pernas, e foi lançada num precipício. A Maria Raymondet, da mesma cidade, foram-lhe cortando as carnes dos ossos até que expirou.
Madalena Pilot, de Vilário, foi esquartejada na caverna de Castolus; a Ana Chaibonière lhe traspassaram o corpo com o extremo de uma estaca e, fixando o outro extremo no chão, a deixaram morrer assim. Jacobo Perrin, um ancião da igreja de Vilário, e seu irmão David, foram esfolados vivos.
Um habitante de La Torre, chamado Giovanni Andréa Michialm, foi apreendido, com quatro de seus filhos, e três deles foram esquartejados diante dele; os soldados lhe perguntavam, após a morte de cada criança, se estava disposto a mudar de religião; a isto negou-se constantemente. Um dos soldados tomou então o último e mais pequeno pelos pés e, fazendo-lhe a mesma pergunta ao pai, quando ele replicou da mesma forma, aquela besta desumana o esmagou rompendo a cabeça do menino. Naquele mesmo momento, o pai se separou bruscamente deles e empreendeu a fuga; os soldados dispararam, mas falharam; ele, correndo a toda velocidade, escapou, e se ocultou nos Alpes.
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